Texto de Egnaldo Lopes
Luzes brilhando no escuro, um pó mágico que encanta e fascina uma comunidade. Logo que a novidade se espalha, não demora muito para que a saúde de muitos seja comprometida e até para que aconteça a morte de uma garotinha. Não, este não é o roteiro de uma obra fictícia. Vinte anos atrás estes acontecimentos fizeram parte da vida de centenas de brasileiros, vítimas da imprudência e irresponsabilidade que causou o maior acidente radiológico do mundo. O J E, quase após duas décadas, mostra agora, com exclusividade, os efeitos deste acidente. Acidente de escalas tão gigantescas que ainda deixa marcas até hoje.
Goiânia, Setembro de 1987. Num depósito abandonado, materiais de um hospital desativado há dois anos permanecem a exposição em céu aberto. Dois brasileiros, Roberto dos Santos e Wagner Mota, simples catadores de sucata encontram o que antes era utilizado como um equipamento hospitalar para radioterapia. Era a cápsula que continha o césio.
A contaminação
Quando o dono do ferro-velho, Devair Alves Ferreira, comprou a peça dos sucateiros, não imaginava que o que espalharia nas próximas horas para vizinhos, parentes e amigos era um material radioativo extremamente prejudicial, podendo, inclusive, ser letal. E é exatamente isso que acontece: a pequena Leide das Neves, filha de Devair, brincava com o pó azul fluorescente retirado da cápsula pelo pai, vai jantar e esquece de lavar as mãos. Leide das Neves Ferreira morre aos seis anos após ingerir o pó radioativo.
Após a constatação retardatária da contaminação de várias pessoas envolvidas com o acidente, o governo estadual tenta resolver a situação silenciando o ocorrido, parte da população goianiense não tem noção da grandiosidade dos acontecimentos. As vítimas são catalogadas e submetidas a tratamentos. Mas a superficialidade com que é tratado o ocorrido deixa as vítimas do césio mais desamparadas e acabam sendo vítimas também de preconceito e do descaso dos responsáveis pela tragédia.
Oderson Alves Ferreira, irmão do dono do ferro-velho, era motorista de ônibus em 1987, foi contaminado e contaminou involuntariamente os passageiros do ônibus que dirigia e todos os seus familiares que residiam em seu lar. Oderson tem a marca do césio em seu corpo: bolhas e feridas formaram-se na palma de sua mão após o contato direto com o pó contaminado, ele friccionou o material radioativo na mão. Após vários tratamentos, como o enxerto, Oderson ainda tem uma enorme bolha na mão esquerda. Apenas a discriminação por parte da sociedade frustra, ainda hoje, mais do que o descaso por parte das autoridades competentes.
História cotidiana
Histórias como essa, são mais comuns em Goiânia do que parece. A mídia não divulga devidamente o assunto e as vítimas vão caindo no esquecimento. É a nossa história sendo ignorada, são brasileiros que perderam a dignidade, que sofrem problemas físicos e sentimentais em decorrência da contaminação. Isolamento, depressão e incerteza em relação ao futuro fazem parte da vida destas pessoas que tiveram a vida virada ao avesso a partir daqueles acontecimentos.
A professora Maria de Lourdes Caixeta Melo, mais conhecida como ‘Lourdinha’ entre seus alunos do ensino fundamental e médio, ganhou, em 2000, o prêmio Professor Nota Dez da Fundação Vitor Civita com o Projeto Radioatividade. Lourdinha percebeu a necessidade de tratar o assunto dentro da sala de aula: “Não podemos deixar de discutir assuntos que marcaram tanto a nossa história”.
A professora conta o que a motivou a desenvolver o projeto: “Quando iniciei o estudo sobre átomos, comentei em sala sobre esse acidente e me surpreendi com fato de a maioria dos alunos não conhecerem a história. Na época do acidente eles tinham apenas um ou dois anos de idade e seus pais ou familiares nunca haviam comentado. Como, normalmente não é um conteúdo escolar (não está nos livros), mas faz parte da história do nosso estado, propus aos alunos que aprofundássemos neste assunto. Foi daí que surgiu o projeto, que acabou sendo premiado”.
Proporções mundiais
Regional? Um acidente como o do césio 137 tem proporções maiores. É considerado o maior acidente radiológico do mundo, e nos dizeres da professora Maria de Lourdes, “serviu de lição para o mundo todo. Muito se aprendeu sobre os efeitos das radiações sobre o organismo humano. Costumo dizer que foi ‘escola’ para o mundo. Esse acidente aconteceu por falta de conhecimento das pessoas, mas principalmente por descaso das autoridades. As principais vítimas foram pessoas simples e trabalhadoras que nada conheciam sobre radiações e nem tinham como conhecer, porém as autoridades (políticas e médicas), essas sim, tinham por obrigação ter evitado esse acidente”.
E completa: “O estado de Goiás foi muito ‘penalizado’ por esse episódio. Foi um grande prejuízo (moral e econômico). Acredito que estas coisas devem ser discutidas em sala de aula, pois é preciso que haja uma visão crítica de fatos históricos. As vítimas do acidente até hoje sofrem pelo descaso das autoridades, então, não podemos deixar que a memória desse acidente seja apagada”.
O medo continua
É justamente pelo que as vítimas do césio lutam, pelo reconhecimento do direito que têm por um tratamento justo e acompanhamento médico e psicológico, pelo apoio da população que ainda discrimina e desconhece os efeitos causados pelo acidente. Muitas pessoas simplesmente não foram reconhecidas como contaminadas pelo césio pelo fato de não haver um aprofundamento nas pesquisas e exames por parte dos responsáveis, é o que dizem os trabalhadores municipais daquela época. São policiais militares, funcionários do antigo Crisa (Consórcio Rodoviário Intermunicipal) e da Comurg (Companhia de Urbanização de Goiânia), eles trabalharam na remoção do entulho radioativo e na guarda dos depósitos em Abadiânia de Goiânia, local onde estão guardados os dejetos da tragédia.
O Ministério Público abriu inquérito contra o estado em 2006 para que estas vítimas também sejam reconhecidas e recebam auxílio, porém a Associação das Vítimas do Césio 137, presidida hoje por Oderson Ferreira, citado acima, denuncia que há ainda várias pessoas morrendo em decorrência da contaminação do césio. Além de Leide das Neves, foram reconhecidas as mortes de apenas mais três vítimas: Maria Gabriela Ferreira, Israel Batista dos Santos e Admilson Alves de Souza.
Várias famílias vivem ainda um drama que parece interminável, pois não sabem se foram contaminadas e denunciam que o governo simplesmente não toma nenhuma providência para examinar estas pessoas. São famílias que vivem a mais de vinte anos na rua do antigo ferro-velho localizado no centro da cidade. Pessoas que relatam vários casos de câncer na família após o acidente radiológico. “Ninguém é considerado vítima, mas nunca vieram aqui fazer sequer um exame completo da gente, para saber se os vizinhos das áreas contaminadas não tiveram problemas”, disse Lúcia Antônia Ribeiro Neto, de 54 anos, residente na rua da tragédia, ao jornal ‘O Popular’, há três anos. Lúcia fez cirurgia para a retirada da tireóide, assim como sua mãe, que veio a falecer. O pai morreu de câncer de pele e a então vizinha, hoje em Palmas (TO), está com câncer no útero.
Você conhece o acidente?
O esclarecimento de que estas pessoas não causam mais risco à saúde dos outros é imprescindível, daí a necessidade da mobilização pela divulgação dos acontecimentos resultantes com a contaminação do césio para que estas pessoas possam ter seu direito reconhecido. Nós temos que conhecer a nossa própria história. Nisto está a beleza de gestos como o da professora Maria de Lourdes, que logo colheu frutos: “Certamente os alunos envolvidos neste projeto construíram conhecimentos que levarão para o resto de suas vidas, então, podemos dizer que o aprendizado foi significativo. Além disso ganhar esse prêmio [da Fundação Vitor Civita] foi muito bom , muito importante para minha realização profissional e pessoal. É gratificante ver nosso trabalho reconhecido”.
E é este conhecimento obtido pela sociedade, e este reconhecimento da importância do assunto, ainda muito excluído do aprendizado e da vida dos brasileiros, que facultará o reconhecimento também das vítimas que clamam por socorro.
São vinte anos de sofrimento. Enquanto o país discute a energia nuclear como uma alternativa possivelmente viável, brasileiros conhecem o que o descaso do poder público pode causar. Antes de tornarmo-nos um país capaz de enriquecer urânio em grande escala, temos que buscar resolver ou amenizar os efeitos de um acidente radiológico que passou longe das usinas nucleares, mas que teve dimensões gigantescas, envolvendo brasileiros que necessitam urgentemente de medidas em curto prazo.
Goiânia, Setembro de 1987. Num depósito abandonado, materiais de um hospital desativado há dois anos permanecem a exposição em céu aberto. Dois brasileiros, Roberto dos Santos e Wagner Mota, simples catadores de sucata encontram o que antes era utilizado como um equipamento hospitalar para radioterapia. Era a cápsula que continha o césio.
A contaminação
Quando o dono do ferro-velho, Devair Alves Ferreira, comprou a peça dos sucateiros, não imaginava que o que espalharia nas próximas horas para vizinhos, parentes e amigos era um material radioativo extremamente prejudicial, podendo, inclusive, ser letal. E é exatamente isso que acontece: a pequena Leide das Neves, filha de Devair, brincava com o pó azul fluorescente retirado da cápsula pelo pai, vai jantar e esquece de lavar as mãos. Leide das Neves Ferreira morre aos seis anos após ingerir o pó radioativo.
Após a constatação retardatária da contaminação de várias pessoas envolvidas com o acidente, o governo estadual tenta resolver a situação silenciando o ocorrido, parte da população goianiense não tem noção da grandiosidade dos acontecimentos. As vítimas são catalogadas e submetidas a tratamentos. Mas a superficialidade com que é tratado o ocorrido deixa as vítimas do césio mais desamparadas e acabam sendo vítimas também de preconceito e do descaso dos responsáveis pela tragédia.
Oderson Alves Ferreira, irmão do dono do ferro-velho, era motorista de ônibus em 1987, foi contaminado e contaminou involuntariamente os passageiros do ônibus que dirigia e todos os seus familiares que residiam em seu lar. Oderson tem a marca do césio em seu corpo: bolhas e feridas formaram-se na palma de sua mão após o contato direto com o pó contaminado, ele friccionou o material radioativo na mão. Após vários tratamentos, como o enxerto, Oderson ainda tem uma enorme bolha na mão esquerda. Apenas a discriminação por parte da sociedade frustra, ainda hoje, mais do que o descaso por parte das autoridades competentes.
História cotidiana
Histórias como essa, são mais comuns em Goiânia do que parece. A mídia não divulga devidamente o assunto e as vítimas vão caindo no esquecimento. É a nossa história sendo ignorada, são brasileiros que perderam a dignidade, que sofrem problemas físicos e sentimentais em decorrência da contaminação. Isolamento, depressão e incerteza em relação ao futuro fazem parte da vida destas pessoas que tiveram a vida virada ao avesso a partir daqueles acontecimentos.
A professora Maria de Lourdes Caixeta Melo, mais conhecida como ‘Lourdinha’ entre seus alunos do ensino fundamental e médio, ganhou, em 2000, o prêmio Professor Nota Dez da Fundação Vitor Civita com o Projeto Radioatividade. Lourdinha percebeu a necessidade de tratar o assunto dentro da sala de aula: “Não podemos deixar de discutir assuntos que marcaram tanto a nossa história”.
A professora conta o que a motivou a desenvolver o projeto: “Quando iniciei o estudo sobre átomos, comentei em sala sobre esse acidente e me surpreendi com fato de a maioria dos alunos não conhecerem a história. Na época do acidente eles tinham apenas um ou dois anos de idade e seus pais ou familiares nunca haviam comentado. Como, normalmente não é um conteúdo escolar (não está nos livros), mas faz parte da história do nosso estado, propus aos alunos que aprofundássemos neste assunto. Foi daí que surgiu o projeto, que acabou sendo premiado”.
Proporções mundiais
Regional? Um acidente como o do césio 137 tem proporções maiores. É considerado o maior acidente radiológico do mundo, e nos dizeres da professora Maria de Lourdes, “serviu de lição para o mundo todo. Muito se aprendeu sobre os efeitos das radiações sobre o organismo humano. Costumo dizer que foi ‘escola’ para o mundo. Esse acidente aconteceu por falta de conhecimento das pessoas, mas principalmente por descaso das autoridades. As principais vítimas foram pessoas simples e trabalhadoras que nada conheciam sobre radiações e nem tinham como conhecer, porém as autoridades (políticas e médicas), essas sim, tinham por obrigação ter evitado esse acidente”.
E completa: “O estado de Goiás foi muito ‘penalizado’ por esse episódio. Foi um grande prejuízo (moral e econômico). Acredito que estas coisas devem ser discutidas em sala de aula, pois é preciso que haja uma visão crítica de fatos históricos. As vítimas do acidente até hoje sofrem pelo descaso das autoridades, então, não podemos deixar que a memória desse acidente seja apagada”.
O medo continua
É justamente pelo que as vítimas do césio lutam, pelo reconhecimento do direito que têm por um tratamento justo e acompanhamento médico e psicológico, pelo apoio da população que ainda discrimina e desconhece os efeitos causados pelo acidente. Muitas pessoas simplesmente não foram reconhecidas como contaminadas pelo césio pelo fato de não haver um aprofundamento nas pesquisas e exames por parte dos responsáveis, é o que dizem os trabalhadores municipais daquela época. São policiais militares, funcionários do antigo Crisa (Consórcio Rodoviário Intermunicipal) e da Comurg (Companhia de Urbanização de Goiânia), eles trabalharam na remoção do entulho radioativo e na guarda dos depósitos em Abadiânia de Goiânia, local onde estão guardados os dejetos da tragédia.
O Ministério Público abriu inquérito contra o estado em 2006 para que estas vítimas também sejam reconhecidas e recebam auxílio, porém a Associação das Vítimas do Césio 137, presidida hoje por Oderson Ferreira, citado acima, denuncia que há ainda várias pessoas morrendo em decorrência da contaminação do césio. Além de Leide das Neves, foram reconhecidas as mortes de apenas mais três vítimas: Maria Gabriela Ferreira, Israel Batista dos Santos e Admilson Alves de Souza.
Várias famílias vivem ainda um drama que parece interminável, pois não sabem se foram contaminadas e denunciam que o governo simplesmente não toma nenhuma providência para examinar estas pessoas. São famílias que vivem a mais de vinte anos na rua do antigo ferro-velho localizado no centro da cidade. Pessoas que relatam vários casos de câncer na família após o acidente radiológico. “Ninguém é considerado vítima, mas nunca vieram aqui fazer sequer um exame completo da gente, para saber se os vizinhos das áreas contaminadas não tiveram problemas”, disse Lúcia Antônia Ribeiro Neto, de 54 anos, residente na rua da tragédia, ao jornal ‘O Popular’, há três anos. Lúcia fez cirurgia para a retirada da tireóide, assim como sua mãe, que veio a falecer. O pai morreu de câncer de pele e a então vizinha, hoje em Palmas (TO), está com câncer no útero.
Você conhece o acidente?
O esclarecimento de que estas pessoas não causam mais risco à saúde dos outros é imprescindível, daí a necessidade da mobilização pela divulgação dos acontecimentos resultantes com a contaminação do césio para que estas pessoas possam ter seu direito reconhecido. Nós temos que conhecer a nossa própria história. Nisto está a beleza de gestos como o da professora Maria de Lourdes, que logo colheu frutos: “Certamente os alunos envolvidos neste projeto construíram conhecimentos que levarão para o resto de suas vidas, então, podemos dizer que o aprendizado foi significativo. Além disso ganhar esse prêmio [da Fundação Vitor Civita] foi muito bom , muito importante para minha realização profissional e pessoal. É gratificante ver nosso trabalho reconhecido”.
E é este conhecimento obtido pela sociedade, e este reconhecimento da importância do assunto, ainda muito excluído do aprendizado e da vida dos brasileiros, que facultará o reconhecimento também das vítimas que clamam por socorro.
São vinte anos de sofrimento. Enquanto o país discute a energia nuclear como uma alternativa possivelmente viável, brasileiros conhecem o que o descaso do poder público pode causar. Antes de tornarmo-nos um país capaz de enriquecer urânio em grande escala, temos que buscar resolver ou amenizar os efeitos de um acidente radiológico que passou longe das usinas nucleares, mas que teve dimensões gigantescas, envolvendo brasileiros que necessitam urgentemente de medidas em curto prazo.