Era um dia como qualquer outro, não fosse a estranha movimentação de estudantes no centro de Salvador. Eles chegavam aos montes e das mais variadas partes da cidade. O objetivo era promover uma manifestação contra uma das personalidades mais emblemáticas e sombrias da política nacional. Bloqueando as ruas e entoando gritos de protesto, exigiam a cassação do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, envolvido no escândalo da violação do painel eletrônico do senado. O ato foi planejado meticulosamente. Temendo a reação da polícia militar, os estudantes haviam decidido seguir até a residência do senador, destino final da manifestação, através de um acesso localizado dentro da Universidade Federal da Bahia, uma área, de acordo com a lei, fora do controle das polícias estaduais. Às 9 horas da manhã, mais de seis mil estudantes estavam concentrados no Campo Grande, um bairro nobre e movimentado, palco das principais mobilizações populares da cidade. Em seguida os manifestantes iniciaram, como planejado, o trajeto por dentro da UFBA, mas logo foram surpreendidos por centenas de policiais militares, que violando a lei, invadiram uma área federal. Seis anos depois o dezesseis de maio de 2001, ainda é lembrado pela demonstração de força e coragem do movimento estudantil e pela brutalidade da polícia que sob o comando do então governador carlista César Borges, ironicamente do Partido Democratas (na ocasião PFL), protagonizou cenas semelhantes aos embates do período da ditadura militar. Armados com revólveres, cassetetes e gás lacrimogêneo, os policiais reprimiram duramente a manifestação e transformaram o campus da UFBA em uma zona de batalha. Em uma comunidade no Orkut, quem participou do protesto relembra os momentos de tensão vividos naquele dia.
O episódio ilustra uma situação corriqueira no Nordeste, mas impensável e inadmissível em tempos de democracia. Políticos abusam do poder e reprimem qualquer iniciativa de oposição ao seu modo de governar, transformando ações como o protesto do dezesseis de maio, em atos de heroísmo passíveis de graves conseqüências que vão desde ameaças a assassinatos. A cena política da região, só agora, passa por profundas mudanças. Sai um sistema político anacrônico e perverso e ganha espaço um espírito democrático. As oligarquias, formadas por famílias que controlam o poder desde o período da ditadura militar e, após a reabertura democrática, conseguiram se manter no comando lançando mão de métodos nem sempre claros, perdem força. Os dois grandes representantes desse tipo de governo são Antônio Carlos Magalhães e José Sarney. Na Bahia, ACM, até pouco tempo atrás, controlava grande parte da câmara dos deputados, a maioria das prefeituras da Bahia, inclusive da capital, o governo do estado e as duas vagas da Bahia no senado federal. Um poder que lhe conferia o status de grande líder político.
ACM desperta paixões e ódios no estado. Assim como possui um eleitorado cativo, acumula uma gama de opositores dispostos a romper, a qualquer custo, com sua hegemonia. Há motivos para essa divisão. ACM foi um dos apoiadores do golpe militar de 1964 e sua vida política sofreu uma notável ascensão durante o período ditatorial. Enquanto apoiava o regime repressor e autoritário, Antônio Carlos fazia um governo populista, aparentemente, voltado para os pobres, conquistando, assim, a simpatia e admiração desta parcela da população. Nas ultimas eleições, porém, o império carlista, desgastado e isolado politicamente, sofreu um duro golpe. A seqüência de 16 anos no comando do governo da Bahia foi interrompida pelo seu principal adversário, o candidato do PT, Jaques Wagner. O fim do casamento entre o povo baiano e ACM pegou todos de surpresa, não foi compreendido nem pelo próprio cabeça branca.
Após perder a prefeitura de Salvador em 2004, ACM alimentava a esperança de mostrar sua força se mantendo no governo. Não conseguiu. A forte propaganda utilizada pelo candidato apoiado por ACM não foi suficiente para esconder os pífios indicadores econômicos e sociais. A Bahia apresenta após longos anos sob o comando do carlismo, o maior índice de analfabetos do país, de acordo com pesquisa, recentemente divulgada, feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). As más notícias não param ai: o estado é o quarto em número de pessoas que vivem com menos de 80 reais por mês e o que mais precisa de investimentos, entre todos os estados do país, para solucionar a questão da miséria, aponta um estudo de 2001 da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Diante destes dados, motivos não faltam para explicar o recado das urnas. Francisco de Oliveira, sociólogo e ex-professor da USP diz que “o carlismo já era”, afirma. Segundo ele, vários fatores contribuíram para a derrocada do reinado de ACM. “A industrialização, a urbanização e o voto obrigatório fizeram com que o carlismo fosse diminuindo aos poucos. Agora todos votavam, não só os subordinados dele. Houve uma melhoria na captação da voz das pessoas, elas foram ouvidas e tendo mais opções acabaram não vendo somente no carlismo a única forma de governo”. Ele rechaça a idéia de que o carlismo tenha capacidade de renovação com o surgimento de novos políticos como o neto do senador, o deputado federal mais votado nas últimas eleições na Bahia, ACM Neto. “Não, e não tem mesmo. ACM Neto tem o poder da altura de sua estatura: um anão. Ele não conseguiria montar a mesmo império do avô e por um motivo simples: o tempo para isso acabou”.
Situação semelhante no Maranhão
Não foi só a Bahia que durante longos e penosos anos funcionou como curral eleitoral das chamadas forças coronelistas. A família Sarney permaneceu 40 anos no poder no estado do Maranhão. O patriarca José Sarney, ex-presidente do Brasil e atual senador pelo PMDB do Amapá, começou sua carreira como deputado federal, entre os anos de 1958 e 1965. Em 1964 mostrou-se contrário ao golpe dos militares, mas após filiar-se ao Arena, partido governista, tornou-se uma das figuras mais importantes do regime. Durante o período da ditadura foi nomeado governador do estado do Maranhão e duas vezes senador. Atualmente, a segunda figura mais importante da família é Roseana Sarney, filha de José Sarney. Ela já foi deputada federal, senadora e governadora por duas vezes.
Durante o tempo em que ficou no poder, a família Sarney, assim como ACM, decepcionou. Pelo menos é o que aponta as estatísticas. Segundo o IBGE (2003), nos 40 anos do governo dos Sarney, o Maranhão ganhou dois terços de maranhenses vivendo abaixo da linha da miséria- é o estado com o maior número de miseráveis, pessoas que sobrevivem com uma renda inferior a 80 reais por mês-, 24% de analfabetos, o índice de mortalidade infantil de 46,3%, e cerca de 40% de casas sem banheiro ou sanitário. Neste mesmo período, a família Sarney ampliou seu poder político e, principalmente, econômico. Hoje possuem um patrimônio de 125 milhões de reais. Entre os bens estão diversas empresas, mansões, um Convento tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional, recentemente reformado com verbas do estado, e, pasmem, até uma ilha. Entretanto, reafirmando o surgimento de um desejo pela legítima democracia na região, a família Sarney também viu em 2006 sua hegemonia ser ameaçada. Sem explicações convincentes a respeito do atraso sócio-econômico no qual estava inserido o estado, a candidata Roseana Sarney acabou sendo derrotada no 2º turno das eleições para governador pelo pedetista Jackson Lago. A diferença do placar não foi das mais expressivas, mas foi suficiente para iniciar uma nova era na política maranhense. Para o sociólogo Francisco de Oliveira, novas figuras no quadro político acabaram desbancando as tradicionais lideranças. “O que acontece lá é outro tipo de fenômeno, as pessoas que se candidatam acabam ficando um tanto populares, há uma concorrência forte por lá, são muitos candidatos que quebram a hegemonia da política”.
Políticos atrasados? Nem tanto...
Anacrônicos na política, os “coronéis” não tardaram em descobrir que os meios de comunicação, sobretudo os mais modernos, são aliados importantes na luta pela manutenção do poder. Trataram logo de arranjar concessões públicas de tvs e rádios, a maioria obtida durante a ditadura militar.
ACM é o proprietário da principal emissora de televisão da Bahia: a Tv Bahia, afiliada da Tv Globo no estado, é líder de audiência e tem como presidente o filho do senador, Antônio Carlos Magalhães Junior. Além da tv, ACM controla mais de 80 rádios em todo o estado e o segundo jornal de maior circulação, o Correio da Bahia, que durante os governos dos aliados à ACM recebeu pomposas verbas publicitárias. Em 1999, por exemplo, o Correio da Bahia recebeu 98% de toda a receita publicitária do governo, ao passo que o Tribuna da Bahia, o terceiro maior periódico, e o A Tarde, o maior jornal, receberam, irrisórios, 1% cada.
À exceção da Tv, que hoje, por pressões da Rede Globo, adota uma postura mais próxima dos critérios de imparcialidade jornalística, os veículos de comunicação servem para publicizar os “feitos” do senador e seu grupo político e destacar “deslizes” de seus adversários. São usados descaradamente como instrumentos meramente políticos. Em 2001, no famoso 16 de maio, a tv de ACM entrou em conflito com a Rede Globo. A emissora baiana não enviou equipes de reportagens para cobrir a repressão policial contra professores e estudantes da UFBA que protestavam em favor da cassação do senador ACM. A Rede Globo, no entanto, solicitou à sua afiliada reportagens sobre o fato, que tinha obtido grande repercussão em outros veículos. A Tv Bahia não enviou nem mesmo imagens, as quais a Tv Globo teve de comprar da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na ocasião, a Rede Globo ameaçou não renovar seu contrato com a Tv Bahia. Desde então, a emissora possui uma relativa autonomia e é poupada das intervenções políticas do senador.
Estados diferentes, problemas iguais...
No Maranhão, mais uma vez, infelizmente, o quadro é semelhante. A família Sarney é proprietária do grupo Sarney Murad composto por cinco emissoras de tv e quatorze rádios, que juntos formam o Sistema Mirante de televisão e rádio. Além disso, controlam o principal periódico do estado, o Estado do Maranhão. Os veículos, aqui, também cumprem papel político. Ao mesmo tempo em que destacam as ações positivas do governo, escondem denúncias de corrupção. Casos como o “Sangalô”, A “Estrada Fantasma” ou “Usimar”, nos quais, segundo o TCU, houve superfaturamento de verbas, não têm espaço na mídia maranhense. “Esses meios de comunicação estão pelo Brasil inteiro em diferentes poderes. ACM conseguiu o que conseguiu porque sempre foi ligado à modernidade, o que era de mais novo, o mais tecnológico”, observa Francisco de Oliveira.
Mas as derrotas tanto de ACM na Bahia, quanto dos “Sarney” no Maranhão refletem algo interessante: nenhuma tentativa de manipulação é capaz de impedir que o povo um dia perceba a nítida diferença entre seu cotidiano duro e sofrido e o mundo mostrado na “caixinha de ilusões” controlada por políticos cujo desejo horrendo e mesquinho é manter o povo subjugado, imerso em sonhos que o distanciem cada vez mais da realidade monstruosa, por eles, intencional, irresponsável e negligentemente, construída e perpetuada.