quarta-feira, 13 de dezembro de 2006



Você pode não acreditar, mas hoje em dia é impossível negar o estrondoso sucesso da doutrina espírita nas novelas. Por que o maior país católico do mundo se tornou tão rapidamente o maior país espírita?



Desde os tempos onde acreditava-se nas conversas com almas que iam para o mundo inferior, na Grécia Antiga, até a morte na fogueira para quem acreditasse nisso, nos meados da Idade Média, a relação deste com um possível outro mundo sempre foi motivo de várias discussões. Estamos em meados do século XIX, avessa à mediunidade, a Igreja Católica, e conseqüentemente seus seguidores, não via com bons olhos as novas idéias e filosofias da então pouco conhecida Doutrina Espírita. Quase 150 anos após a publicação de O Livro dos Espíritos, marco da Doutrina, o maior país católico do mundo pára para assistir as inúmeras novelas que tratam sobre o mesmo tema que o pedagogo Hippolyte Leon, sob o pseudônimo de Allan Kardec, começou a codificar mesmo com terríveis oposições da população da época. Mas o que significa isso? Católicos e outras religiões mais abertos ao diálogo? O que desperta essa simpatia e aderência de um público que só faz quebrar recordes? Antes de responder todas estas perguntas, vale a pena começar respondendo, talvez a mais importante.

O que é Espiritismo?

O Espiritismo propriamente dito nasceu na França. Em toda a Europa havia várias manifestações espirituais, tais como objetos que se mexiam sem nenhum motivo aparente, ou até mesmo as já tão famosas mesas giratórias, que faziam deste acontecimento um quase ancestral dos reality shows de hoje. Até então isso não fazia diferença alguma para o pedagogo Hipollyte Leon , de família tradicionalmente católica, ele escrevia livros sobre as condições do ensino francês e dicionários de gramática, área que havia se especializado.Convidado por amigos, para ver de perto uma das manifestações, depois de testar a veracidade dos acontecimentos, Hippolyte começou, juntamente com outros filósofos e médiuns, a codificar a filosofia que tratava de assuntos que, além de visar explicar os tais fenômenos, tinha a meta de conciliar filosofia, ciência e religião para trazer o tema para a realidade da sociedade no geral. Segundo o diretor da área de divulgação da Federação Espírita do Estado de São Paulo, Clodoaldo de Oliveira, tais manifestações e sua codificação já estavam prometidas desde o tempo de Jesus, aliás, prometidas pelo próprio. “O Espiritismo é o consolador que nos foi prometido por Jesus” diz. Ainda, segundo Clodoaldo, as manifestações ocorreram na Europa, particularmente na França, pois era ali que se encontrava o ápice da consciência humana na época. “O século das luzes era propício para o que aconteceu” completa. Através de diálogos com outros espíritos, considerados de caráter superior e liderados por um espírito denominado Verdade, Hippolyte, adotou o pseudônimo de Allan Kardec. A partir daí o Espiritismo dava os seus primeiros passos, sem hierarquias, ou qualquer adoração a imagens, a doutrina que pregava a reencarnação, a vida após a morte e a mediunidade como uma forma de reparar expiações, logo se tornou conhecida, e tão igualmente contestada.


O Espiritismo no Brasil


Apesar de ter nascido na França, o Espiritismo tão logo chegou ao Brasil, fez vários adeptos por aqui. O estrondoso sucesso que médiuns (que significa “meio”, ou seja, condutor dos espíritos desencarnados com os encarnados) como o que Chico Xavier fez ,ajudou, e muito, na divulgação da doutrina. Tanto que hoje, o país que ostenta o título de maior país católico do mundo, também divide o de maior país espírita. Tamanho sucesso é creditado diretamente a nós. Com mais de 20 milhões de espíritas, o Brasil chega a exportar alguns de seus palestrantes (no espiritismo não há padres ou nem mesmo pastores) para os Estados Unidos. Popularidade lá fora, e aqui dentro mais ainda. O mercado editorial é uma prova concisa disso. João Martins, gerente de uma mega store de uma grande rede de livrarias em São Paulo, contou que são vendidos por dia mais de 780 livros com fundo espiritualista só na loja em que gerencia, destes, 300 são exclusivamente espíritas, o que não quer dizer que são a mesma coisa. Espiritualismo é uma doutrina meramente filosófica, ou pode fazer parte de uma outra religião, acredita na imortalidade da alma, e geralmente é contrária ao materialismo. Nem sempre quem é espiritualista acredita em mediunidade, em reencarnação, ou coisas ligadas diretamente à Doutrina Espírita.


Novos adeptos ou curiosos?

Mas se o espiritualista acredita na vida após a morte sem efetivamente ser espírita, ou acreditar no espiritismo, o sucesso das novelas é pura curiosidade? Para a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovelas da USP, Maria Lurdes Motter, a resposta é sim. “A vida após a morte é uma questão universal, não está ligada diretamente ao espiritismo.” diz. Já para o cético Kentaro Mori, responsável pelo site Ceticismo aberto, o real motivo de tanto sucesso é puramente lúdico. “Novelas geralmente vem acompanhadas do aviso que são obras de ficção, da mesma forma que os filmes de fantasia em Hollywood são responsáveis pelas maiores bilheterias, não é grande surpresa que novelas que lidam com o sobrenatural façam sucesso por aqui.” Sucesso lúdico ou não, o que é mostrado pelo IBOPE das novelas que trataram do tema, é uma avalanche de recordes em audiência. A Viagem, remake produzido pela autora Ivani Ribeiro, de sua própria obra de 1975, foi a novela de maior público no horário das sete, nenhuma novela até hoje superou os preciosos pontos da novela que foi a única, com exceção de a Gata Comeu, a ser reprisada duas vezes e mantendo ótimos índices. Mais recentemente outro recorde, desta vez no horário das seis, foi quebrado. Alma Gêmea, que além de comentada, teve no capítulo final a mesma platéia que último capítulo das novelas das oito. Sucesso feito, sucesso mantido, a Globo resolveu manter o tema, desta vez em O Profeta, outro remake de Ivani Ribeiro. A trama que fala sobre o uso da mediunidade, tem mantido um público bem fiel. E se público se interessa, na atual novela das oito, Páginas da Vida, isso não é diferente. Toda vez que a atriz Fernanda Vasconcellos entra em cena, sobem os ponteiros da audiência, que chegaram a picos de 63 pontos quando a sua personagem, a jovem Nanda, reapareceu em forma de espírito para a pequena Clara, sua filha na história. Na trama de Manoel Carlos a citação ao espiritismo não é tão evidente em comparação as outras novelas da Globo, mas ajuda a lembrar, e bastante.

Excessos?

Mas a mídia exagera na quantidade e na qualidade do que é mostrado? “Se você for analisar, e isso são fatos espíritas e não mais fenômenos, tirando uma pequena distorção ali, outra lá, o que é mostrado na televisão pode ser considerado como uma forte e até indiscutível relação com a Doutrina Espírita, se você for pensar o espiritismo está em tudo, leves toques da nossa filosofia estão nas novelas, revistas, filmes.” Comenta Clodoaldo. “Um dia assisti o filme O Gladiador, e no final, quando o personagem título trava uma batalha e está desencarnando, ele vê a sua família e atravessa um portal, o filme não é espírita, mas a nossa filosofia também está ali” completa. Para Clodoaldo, o Espiritismo se tornou bem aceito pelo público, por se aplicar a qualquer fato da vida. Sem hierarquias ou dogmas a Doutrina Espírita dá a total liberdade para opinião, seja ela qual e de quem for. “Nossa doutrina, não desmerecendo a nenhuma outra, tem lógica, por isso tantas pessoas refletem com esses temas”.

Mas afinal

Esse sempre será o recurso utilizado para manter a atenção do público? “A mídia procura sim direcionar o seu público, mas não no sentido de convertê-lo, seu objetivo é o de apenas explorar interesse por tais assuntos para alcançar maior audiência.” Diz Mori. “Anúncios sobre vida após a morte, da existência de civilizações extra terrestres e afins, infelizmente são muito comuns, quando sabemos que tais temas precisam de uma verdadeira confirmação científica” fecha. Para Maria Lurdes, o tema chega ao final quando acabarem-se os recursos. “Quando a diminuição de audiência for sentida, haverá uma redução no tratamento desses temas”. Já para Clodoaldo acontecerá ao contrário. “Não é a novela que aumenta a popularidade do Espiritismo, mas é o Espiritismo que dá a popularidade para a novela.”


Que um assunto puxa o outro, isso não há dúvidas. Por enquanto, independentemente do assunto tratado, já é possível ver que existe um país onde a exposição da idéia do outro já não causa espanto ou protesto, pelo contrário, existe, senão uma concordância, respeito. E isso nenhuma novela, pelo menos por enquanto, conseguirá mostrar.