segunda-feira, 14 de maio de 2007


A pergunta acima sempre foi um assunto polêmico. O J E mostra a questão nos seus lados mais conflitantes: o histórico, o político, o juridico e o social. Existe o lado ético?


Texto de Fernando Galacine, em São Paulo.


Alvo de discussões dentro de várias camadas da sociedade e por vários milênios, a questão de dar fim à gravidez remonta as histórias de civilizações antigas e tanto direta quanto indiretamente, nos ajuda a entender como a sociedade de cada época dava o seu valor a esse assunto. Na Grécia antiga era comum a defesa do aborto após certa idade, Platão defendia essa idéia pelo que conhecemos hoje como gravidez de risco, que na época atribuía outro fator: com uma gestação sujeita a complicações eram muito maiores as probabilidades de futuros guerreiros nascerem com alguma deficiência e assim perpetuar essa característica dentro de uma hegemonia bélica. Já na Roma antiga, onde justamente hoje é o Vaticano, o aborto era um ato lícito quando a taxa de natalidade era considerada suficientemente alta, só proibido caso fosse contrário aos interesses do marido e pai da criança, ou feto, se lhe for mais apropriado. O filho, enquanto ainda estava sendo gerado, era visto como parte da própria mãe, sem nenhuma autonomia, sem reconhecimento nenhum perante à sociedade. Desse ponto, onde não havia consideração sobre a vida intra-uterina, até o dogma onde a vida começa no instante da concepção, existente na maioria das religiões cristãs, a visão do aborto não se modificou muito do ponto de vista moral ou ético. O aborto começava a entrar numa questão política.


Quanto vale a vida?


Talvez você responda com uma frase pronta: não tem preço, mas antes que isso passe para uma propaganda de cartão de crédito, é preciso entender que antigamente uma vida, ou melhor, uma pessoa valia e muito. Era de uma enorme população que os grandes impérios precisavam para se manterem com posturas firmes diante de outros estados e sempre que possível demarcarem novos reinados. Um império com déficit populacional não se desenvolvia, era facilmente atacado e ultrapassado por outras nações além de correr o risco de tombar, se não sozinho, com um empurrão de forças inimigas. E foi justamente isso que Napoleão III, previu para si. Depois de ter tomado com atitudes nada ortodoxas o poder e trono francês, que na época era uma república, o sobrinho de Napoleão viu seus planos de desenvolvimento econômico e industrial irem por água abaixo, por falta de mão de obra. Justamente nesse período, o Papa Pio IX precisou fugir às presas das revoltas que visavam um restabelecimento da república romana, indo assim contrária aos poderes papais. Nessa época Pio IX manteve contato com alguns governantes franceses incluindo Napoleão III, que após certo período reempossaram os palácios papais ao poder do Santo Pontífice. O que isso tem a ver com o aborto? Segundo os livros de história, depois dessa volta quase restringida só ao Vaticano, e não a toda Itália, Pio IX voltou mais conservador, o suficiente para em 1854 fazer valer a teoria que a vida começa na concepção, algo que até então não era definido pela Igreja, que de simples condenação ao ato do abordo, passou considerá-lo com pecado.. O que foi uma mão na roda para o Império francês que via suas operárias utilizarem-se do aborto, que já era proibido legalmente, para enfrentarem a jornada sub humana de trabalho.


Condenado


Desde então a Igreja católica reprime veementemente o aborto em qualquer situação, ato que acabou passando para as formas de governo de muitos países, especialmente os cristãos, incluindo aí o Brasil. O estado que depois de certa altura se tornou definitivamente laico, tinha na maioria dos seus governantes, os homens de tradição familiar católica. E desapontar o padre nas missas de domingo não era um de seus planos. Tanto que atravessando o final do Império e rompendo a República as constituições de 1830 e 1890 davam a qualquer tipo de abordo status de crime. Algo que só mudou por aqui em 1940, liberando o aborto em duas circunstâncias que você já deve saber: risco à saúde da gestante ou estupro, casos como incesto, que é uma relação entre parentes próximos, por exemplo, não foram postos nessa lista. Antes disso, ainda na Ex- União Soviética, em 1920 por um decreto o aborto foi legalizado, um pouco depois da Primeira Guerra Mundial, indo em direção inversa dos países europeus ocidentais, que proibiram o aborto justamente pela baixa populacional que a guerra havia causado. Atitude contrária a do Japão, que em plena Segunda Guerra Mundial, decretou em 1948 a descriminalização do aborto ainda com os ianques em suas terras.


Várias visões


É claro que do ponto de vista moral religioso cada um tem a sua própria opinião, e tanto para quem defende quanto quem é contra o aborto, isso não é uma meta para querer ser mudada. Se para o católico o aborto é intolerável já que não existe um feto e sim um ser humano desde a concepção, para o mulçumano ele é válido entre o 80º e o 100º dia de gestação, dia em que, segundo a religião, Alá sopra a vida no ventre da grávida. Já para um judeu, um feto só se transforma em Ser humano no instante em que nasce, e mesmo assim só pode ser considerado uma pessoa após um mês de vida. Com tantas visões diferentes, o mundo também tem leis diferentes em cada país, e em cada momento: A Alemanha que hoje não criminaliza o aborto em nenhuma circunstância, pelo menos nas primeiras 14 semanas de gestação, já condenou à morte os arianos que o fizessem, na época do nazismo de Hitler. Por esses motivos, para quem é a favor da legalização da prática médica mais realizada no mundo, o ponto central sobre a legalização do aborto não poderia ficar apenas nos motivos religiosos, ou então somente em motivos de uma única religião. O aborto começa a sair de uma questão política e religiosa para entrar num contexto jurídico.


Quem tem direito?


A Constituição brasileira é clara: o direito a vida é inviolável, segundo o 5º artigo da Carta promulgada em 1988 o direito à vida é representado pela seguinte frase: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção se qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País inviolabilidade do direito à vida...” Esse é um dos argumentos que os chamados grupos Pró-vida oferecem no campo jurídico: que a vida está segura até mesmo na Constituição, algo que rege, por dever, todo um sistema. Se há dúvidas quando começa a vida, no campo jurídico ela também começa na concepção, e é isso que mostra o Pacto de São José da Costa Rica, cujo Brasil assinou e que no seu 4º artigo diz que: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção.” Tanto o Artigo n.º 5 da nossa Constituição quanto o Artigo n.º 4 do Pacto de São José da Costa Rica são invioláveis, no caso da Constituição recebe um nome mais pomposo: cláusula pétrea, o que significa que nem por uma emenda constitucional qualquer um desses direitos pode ser modificado o que tornaria difícil um projeto como o da Deputada Federal Jandira Feghali, do PC do B, pelo Rio de Janeiro, que pretende estender a nossa atual lei contra o aborto, que vale desde 1940, para a versão considerada modelo por grande parte dos países europeus: permitir o aborto até 12 semanas de gestação, e dentro desse período torná-lo livre, ou seja, em três meses a mulher pode abortar sem ter a obrigação de prestar maiores detalhes sobre o motivo que a levou fazer tal ato. Para quem é contra a idéia da lei, um plebiscito sobre o tema, como quer o Governo Brasileiro, é perder totalmente os valores de vida. Os países considerados majoritariamente católicos que o digam: México e Portugal aprovaram recentemente suas leis de descriminalização do aborto. Esse último após uma visita que acabou mexendo até com a Marinha lusitana.



A Holanda permite o aborto. E são as leis desse país que vigoram no interior de uma embarcação holandesa que atua sempre em águas internacionais. A Women on Waves, uma ONG favorável à legalização do aborto, viaja por vários países onde a prática ainda tem status de crime, e de barco, recolhe mulheres que por esses motivos não a podem fazê-la. Em alto-mar elas recebem pílulas abortivas e voltam, não mais grávidas, para terra firme. A holandesa Rececca Grompers, responsável pela Women on Waves, virou alvo de discussões e protestos, juntamente com sua ONG em Portugal, no final de 2004. Na época Portugal tinha leis iguais às nossas, e um aporto de um navio pró-aborto, em terras lusitanas foi considerado uma afronta pelo governo português que acionou imediatamente a Marinha para deter a embarcação. A notícia ganhou tanta repercussão em Portugal que começaram a ganhar força os movimentos a favor de Rebecca, que de uma maneira ou outra acabou sendo finalizado com o plebiscito em Fevereiro desse ano, o segundo sobre o tema em menos de dez anos. O resultado foi sim, e Portugal hoje é um país em que o aborto não é considerado mais crime. O que Rebecca Grompers defende? O aborto com um contexto social.


Caso médico


De acordo com estimativas da Organização Mundial de Saúde, 87 milhões de mulheres engravidam sem a sua vontade ou da família, em todo o mundo. Dessas, mais da metade, ou mais de 46 milhões, fará um aborto. Das 46 milhões, que optaram por dar fim a gravidez, 19 milhões a farão em condições não assistidas e altamente inseguras. O resultado não poderia se outro: 70 mil mulheres morrem em conseqüências de um aborto ilegal todos os anos, no mundo inteiro. Por esse motivo, as ONGs que defendem a descriminalização do aborto, incluindo a Women on Waves, dizem que o a proibição do aborto não é um motivo religioso e sim um problema de saúde pública, que deve ser resolvido pelo Estado sem convenções com a religião, visando o direito da mulher à saúde e à vida. A socióloga e coordenadora da ONG Católicas pelo direito de decidir, Dulce Xavier, que é a favor da descriminalização do aborto diz que o assunto é uma questão social, e que o direito de decidir sobre isso tem que estar garantido à uma mulher que possivelmente queira realizá-lo. “Ninguém quer fazer aborto porque gosta. Há uma necessidade nisso, e essa necessidade deve ser respeitada, garantindo que isso possa ser feito com a ajuda do Governo.”


Lado ético?

Governo que se divide cada vez mais, espelhando os lados da sociedade que defendem cada qual o seu direito à vida. Qual delas é a mais importante, mais ética, ou mais justa os infinitos argumentos que cada lado tem a seu favor podem mostrar as vertentes de cada uma. Talvez as duas sejam importantes, talvez nenhuma. Se realmente existe um lado ético nisso tudo, talvez um dia se chegue a um consenso.