domingo, 10 de junho de 2007

A transposição do Velho Chico

J E - SALVADOR


Em meio à terra árida, ao ambiente hostil, à elevada temperatura do sertão, surge uma das maiores riquezas do nordeste. De tão importante, de tão íntimo, de tão amigo dos sertanejos foi cantado em música, contado em cordéis, rimado em poesias, ganhou espaço na rica cultura nordestina e na vida de cada habitante da região. O “Velho Chico”, assim como outros velhos do Brasil, anda debilitado. Abandonado, agoniza à espera de cuidados. Mas parece que estes cuidados devem ficar para depois, o “Velho Chico”, responsável por fornecer a água captada para geração de energia de nove usinas hidrelétricas e pela água utilizada na irrigação das áreas destinadas à fruticultura do Vale do São Francisco, terá agora de buscar forças e enfrentar uma nova empreitada. Um desafio que é tido por muitos como uma agressão.

A transposição do São Francisco ainda nem dividiu o rio, mas já divide opiniões. Este é um assunto que suscita polêmica não só nas regiões por onde o São Francisco passa. Todo o Brasil discute a legitimidade do projeto que pretende reformular o trajeto natural do rio. De um lado estão nordestinos, ambientalistas e políticos temerosos de que esta intervenção possa decretar o fim do “Velho Chico”, do outro estão nordestinos, ambientalistas e políticos crédulos numa transposição segura que levará água para áreas até então castigadas pela seca. Os argumentos para sustentar as duas teses são sólidos e, por isso, criam há muito tempo uma divisão na opinião pública.

O projeto de transposição é antigo e não nasceu durante o governo Lula. A idéia surgiu no século 19 quando Dom Pedro II cogitou a possibilidade de intervir no curso do rio. A idéia foi abortada diante da inviabilidade técnica e pouca popularidade da medida. Na década de 90 a transposição voltou à agenda dos governos e não mais saiu, assim como os debates em torno do tema. O projeto atual está orçado em 5 bilhões de reais, segundo o governo federal. Mas um estudo do professor João Abner, especialista em hidrologia e irrigação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, estima um valor quatro vezes mais elevado, 20 bilhões de reais.


Para quê?


O objetivo da transposição é ofertar água a 12 milhões de pessoas do semi-árido nordestino, mais especificamente dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande Norte e Ceará, que hoje sofrem com o problema da seca. Ao todo serão 268 cidades que serão, supostamente, beneficiadas. Supostamente, pois, segundo especialistas, há grandes chances de o projeto ir por água a baixo, o dinheiro investido desperdiçado e o problema da seca continuar existindo. Caso a transposição não dê certo o maior problema será os impactos ambientais causados que, provavelmente, serão irreversíveis, como até mesmo a extinção do Velho Chico.

Além disso, a transposição, mesmo que bem sucedida, apontam os críticos, não resolveria por completo o problema da seca. Um relatório feito por duas comissões da UFRN, encarregadas em estudar a questão, revela que somente 5% de toda a região do semi-árido será atendida; a vazão média de 50 m³/s será insuficiente para atender a área estimada, o custo de manutenção da água, para fins de irrigação, será elevado; perdas provocadas pela evaporação e pela infiltração deverão aumentar ainda mais o custo da água e haverá uma privatização não só daquela envolvida no projeto como também da água já existente na região.


Outro problema é que a orientação do projeto para a irrigação, de acordo com o estudo, esbarrará na deficiente estrutura irrigatória da região. Setenta por cento das águas trazidas pelo projeto chegaria a lugares que, hoje, já possuem um sistema de irrigação e de alguma forma já recebem água. Apenas 4% seria destinado a locais que, hoje, não tem nenhum tipo de acesso. Ainda de acordo com o relatório, as regiões nas quais o quadro da seca é mais grave ficaram de fora do projeto.

Para os que são contra, todo o empenho do governo em iniciar as obras tem uma só motivação e de ordem econômica. Eles acreditam que haja um acordo entre o governo e as empreiteiras envolvidas. A transposição seria uma maneira de Lula retribuir o apoio financeiro dado por elas durante a campanha presidencial. De fato, algumas denúncias de corrupção surgiram no decorrer do processo de licitação das empreiteiras. No dia 13 de junho de 2005 o “Jornal do Brasil” publicou matéria, a qual dizia que as empresas responsáveis pela execução das obras estavam previamente definidas em um acordo que envolveu os, então, ministros da Casa Civil, José Dirceu, e da Integração Nacional, Ciro Gomes.


As empresas seriam as construtoras OAS e a Odebrecht. Em outubro de 2005 o Tribunal de Contas da União também constatou indícios de irregularidades. O TCU identificou um superfaturamento de 406 milhões de reais. Mais recentemente descobriu-se que a empreiteira Gautama, envolvida no maior último escândalo de corrupção do país (pelo menos até a conclusão desta reportagem), estava pré-qualificada para disputar a licitação das obras de transposição. Levantando ainda mais suspeitas contra a transparência e legalidade do processo de contratação.


Sem campanha


Ignorando, porém, todos estes argumentos e fatos, o presidente Lula autorizou o início da transposição do Rio São Francisco. As obras começaram, justamente, no Dia Mundial do Meio Ambiente, 05 de junho, em meio a uma onda de protestos. Um batalhão de engenharia do exército desembarcou em Cabrobró (PE) com a missão de dar o ponta pé inicial. Nesta primeira etapa será construído um canal de 6 km. Poucos dias antes, um seminário, realizado em Salvador, promovido pela União dos Municípios da Bahia, discutiu o assunto. Estiveram presentes a ex-senadora Heloísa Helena (PSOL) e o bispo da diocese de Barra, Dom Luis Cappio.

Os dois são críticos ferrenhos da transposição. A ex-senadora, nordestina de Alagoas, acredita que o projeto não vai atender a quem realmente precisa. “Esta é uma fraude técnica e uma fraude política”, disse ela. Dom Luis ficou conhecido nacionalmente em 2005, após uma greve de fome que durou 11 dias. Neste período, o religioso ingeriu apenas a água do rio, conseguindo, assim, o adiamento da execução das obras.

O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), não compareceu ao encontro alegando compromissos do ministério. A ausência foi interpretada, por quem é contra ao projeto, como uma confirmação da falta de interesse do governo em discutir a questão. Geddel, desde que assumiu o ministério no início desse ano, transformou-se em uma espécie de garoto propaganda da transposição. Por onde vai alardeia seus benefícios e tenta convencer a todos sobre a viabilidade da obra.


O curioso é a mudança de posicionamento do ministro. Até pouco tempo, Vieira Lima declarava aos quatro cantos ser contrário à transposição. Hoje, demonstrando uma certa negligência, irresponsabilidade e uma dose de oportunismo político, admite ter se posicionado publicamente sem conhecer devidamente o projeto...Outro que repentinamente mudou o discurso foi o próprio presidente Lula. Antes de ser eleito, ele nunca havia demonstrado apoio ao projeto. No debate entre os presidenciáveis promovido pela TV Globo em 2002, o então candidato do PT não se mostrou como sendo um entusiasta da idéia da transposição. “O velho Chico tá cansado, não dá pra irrigar tudo que se pensa com o Chico. É preciso estudar muito bem a questão”, disse Lula. O “estudar muito bem” do presidente não durou mais que 6 meses.

Em julho de 2003, já eleito, Lula, pela primeira vez, defendeu publicamente a polêmica e impopular intervenção no rio. "Agora eu vou fazer a transposição das águas para o Nordeste. Vou fazer sem nunca ter prometido. Eu duvido que alguém, neste país, tenha me ouvido, em algum momento, dizer que ia fazer. Duvido. E vou fazer. E nós sabemos que tem uma parte do Nordeste que precisa que a água chegue lá. Ah, vai custar quanto? O problema não é quanto vai custar a obra. O problema é quanto custa não fazer a obra que o povo precisa para uma área pobre como o semi-árido nordestino", falou em discurso.


Primeiro o verde

Grupos ambientalistas como o Greenpeace, conhecido em todo o mundo por promover atos em defesa do meio ambiente, também são contra a transposição. As ONGs defendem, como a maioria da população, um trabalho de revitalização no Velho Chico que hoje sofre com um crescente e implacável processo de assoreamento e poluição-provocada pelo despejo de esgoto e agrotóxicos. Atualmente existem 14 ações civis contra a transposição no Supremo Tribunal Federal (STF). Todas aguardam apreciação e julgamento sem data prevista. Entre os impetradores das ações estão o Ministério Público Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil e instituições vinculadas à organizações ambientais. Rômulo Vieira, coordenador do Projeto de Integração do Rio São Francisco, em entrevista concedida à Agência Brasil, minimizou a relevância das ações. “Não acredito em paralisações.

Todas as ações contra o projeto, foram mais de vinte, foram derrubadas. Não existe nenhum fato novo que possibilite a justiça voltar atrás naquilo que já decidiu”, falou. Como bem disse Vieira, ao se referir as mais de vinte ações contrárias ao projeto, o empenho da sociedade em barrar o início das obras é grande, mas ainda maior parece ser, por motivos não muito claros, a determinação do governo em colocá-las, o mais rápido possível, em execução, desprezando a extensa gama de posições divergentes.


Uma das ações impetradas no STF argumenta que “em projetos de integração de bacias hidrográficas já realizados no planeta, surgiram inúmeros problemas ecológicos e a imposição da transposição da bacia hidrográfica do rio São Francisco ignora a gestão da bacia doadora e traz sérios riscos para seu futuro”. No entanto, o Ibama-Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-também não compartilha desta visão e não levou em conta estes dados. No último dia 23 de março autorizou, à revelia da Procuradoria da República no Distrito Federal, o começo das obras.

O debate a respeito da transposição não fica restrito às figuras públicas, políticas ou a organizações. Nas ruas a população amplia a discussão. A jovem Shayenne, moradora de uma região que, teoricamente, será beneficiada pela transposição, comenta sua postura diante do projeto.“Sou a favor, primeiro porque acho que minha região seria extremamente beneficiada com a parada toda. Segundo porque conhecendo a atual situação do rio acho muito alarme falso toda esse rebuliço dos órgãos de proteção ambiental”. Entrando um pouco em contradição, logo em seguida, ela reconhece as debilidades do São Francisco. “Como qualquer outro rio que é usado para o extrativismo ele está sim um pouco acabado, mas nada que uns pequenos reparos não resolvam. E por que não revitalizar antes de transpor?”.

Após esta indagação, informei a nossa entrevistada que as obras já tinham sido iniciadas sem nenhuma obra concreta de revitalização. Diante de tal afirmação, Shayenne preferiu calar-se. O bancário Enio Lopes, morador do Ceará, também é favorável ao projeto. “Quando você conhece a realidade de perto é impossível ser contra. Esta obra irá beneficiar 12 milhões de pessoas que em pleno século 21 vivem sem saber o que é ter água tratada em suas casas. Se existem críticas, desde que sejam fundamentadas, podem ser vistas como uma forma de corrigir algo que possa está errado.


O maior dano ambiental que pode acontecer vai ser água chegando aos leitos dos rios secos e acabando com os ninhos de rolinhas. Existe água, eu vi!”, fala.
Shayenne e Enio, no entanto, são minoria. A maior parte da população é contrária ao projeto. Não só rechaça a idéia, como também reclama da incipiência do debate promovido pela mídia e pelo próprio governo.

Luan Silva Madureira, técnico administrativo da secretaria da fazenda do Estado da Bahia e morador de Salvador diz ser “radicalmente contra. Algum tempo atrás eles estavam fazendo racionamento por causa desse rio. Isso é maluquice. Defendo o Lula, mas tem coisas que ele faz que eu não concordo”, argumenta.


Quem também compartilha da mesma opinião é Alisson, habitante de Curvelo, Minas Gerais, cidade que fica a 100km do rio São Francisco. Frustrado, admite que já chegou a participar de uma caminhada pela cidadania ao lado do presidente Lula “esse mesmo que quer fazer essa obra faraônica”. Segundo Alisson, o rio não está preparado para enfrentar um processo de transposição. “O estado do Rio São Francisco e seus afluentes desde a nascente na Serra da Canastra até sua foz é lastimável, não há como navegar nele mais de Pirapora até Sobradinho devido aos bancos de areia que se formam no leito do rio causados pelo desmatamento. Seus afluentes estão secando por causa da exploração de eucalipto sem contar que esta obra é de caráter politiqueiro e isso é fácil de observar nos bilhões que serão gastos”, diz. Prova de que a transposição não recebe a anuência da maioria da população são as várias comunidades existentes em um site de relacionamentos formadas por pessoas, especialmente jovens, que criticam e desaprovam o projeto.


A maior delas “Transposição não” tem aproximadamente 3.600 pessoas. Outra comunidade chamada de “Transposição sim Velho Chico” tem, apenas, 712 membros e é a maior comunidade favorável ao projeto. Dom Luiz Cappio, já citado nesta reportagem, também utiliza a internet para combater a transposição. Ele mantém um site chamado “Uma vida pela vida” para alertar a sociedade para a questão. Lá estão disponibilizados documentos enviados pelo bispo ao governo e informações detalhadas sobre o projeto e suas implicações.

Enquanto tudo isso acontece, seu Chico, nordestino, aposentado e freqüentador assíduo da Praça Piedade, tradicional recanto de idosos no centro de Salvador, permanece sentado no banquinho do tranqüilo lugar. Mostra-se pensativo e preocupado com o que um outro nordestino anda fazendo com um dos principais bens de todos os nordestinos. Como diz seu Chico, agora só nos resta torcer e como legítimos filhos da terra, rezar, talvez, para o São Francisco de Assis, um dos santos preferidos do Seu Chico e o patrono do ameaçado e indefeso Velho Chico.