Do JE em Salvador
Seis horas. O sol, responsável pelas belas manhãs da capital baiana, ilumina ainda timidamente mais um dia. Salvador, a terceira maior metrópole do Brasil, começa, aos poucos, a despertar. Mas Rosângela Gonçalves está de pé bem antes. O despertador está programado para bem cedinho, as 5h30.
O som do aparelho, bastante desagradável para aqueles que estão embalados pelo sono, ecoa pelo apartamento em um bairro popular de Salvador. Agilidade é fundamental, em 25 minutos ela tem de estar no ponto de ônibus à espera da condução que a levará para a Feira de São Joaquim, a maior e mais conhecida de Salvador. Aqui se encontra de tudo, desde artesanatos a roupas e calçados, mas o forte do local é a venda de frutas, verduras e ingredientes para todos os pratos da culinária baiana e também nordestina. Como em toda feira o que não falta é gente anunciando os produtos aos gritos, tudo para atrair a freguesia. Além do gogó, os vendedores contam com os preços que são por si só para lá de convidativos. Por causa das mercadorias baratas e da grande variedade de produtos, pessoas de toda a Salvador escolhem a Feira de São Joaquim para realizar suas compras. Rosângela não se incomoda com a intensa movimentação e nem se intimida mais com os berros dos vendedores, ela já sabe o local exato onde ficam as bancas com as melhores ofertas e produtos. Paciente, seleciona um a um, cada quiabo, legume imprescindível no preparo do caruru.
Exigente, escolhe o melhor camarão, a cebola mais bonita, o tomate mais vistoso. A qualidade está sempre em primeiro lugar, o segredo de qualquer culinarista que se preze. Produtos comprados, é hora de voltar para casa e iniciar uma nova etapa do trabalho: o preparo. Do que? Em 1997, Rosângela deixou seu cargo de chefe de escritório em uma empresa de assistência técnica para se dedicar à culinária. Tornou-se baiana de acarajé. Longe do ambiente estressante de uma empresa, hoje ela mesma administra seus horários e enfrenta, sozinha, os sucessos e insucessos, inerentes à vida de qualquer microempresário. Isso mesmo, microempresário. Rosa, como é carinhosamente chamada pelos clientes, não possui apenas um tabuleiro, uma espécie de mesa usada pelas baianas sobre a qual são colocadas as panelas com os condimentos do acarajé e do abará, ela montou um estabelecimento comercial com direito a muitas mesas e televisão, tudo para uma boa acomodação dos clientes atraídos não pelos gritos, mas pelo forte, delicioso e irresistível cheiro exalado pelo acarajé enquanto é fritado no azeite de dendê. Os ingredientes do quitute mais famoso da Bahia são: 500 g de feijão fradinho; 500 g de cebola; sal, a gosto; Uma cebola pequena, com casca; óleo e azeite de dendê para frita;e o principal, uma pitada de baianidade;.
Olhando a receita até parece fácil, porém basta um deslize para dar tudo errado. Massa pronta, é necessário um jeitinho todo especial para agitá-la. Parceira indispensável, uma enorme colher de pau ajuda a mexer a pasta branquinha, branquinha de feijão fradinho moído. Este processo irá determinar a crocância, a maciez e a leveza do acarajé. A maneira pela qual se mexe a massa e a força aplicada sobre ela se tornam importantíssimos. Habilidades desenvolvidas por Rosa nesses quase 10 anos de profissão. “É cansativo. Eu acordo muito cedo e vou dormir muito tarde. É um dia inteiro de muito trabalho, mas vale à pena”, fala Rosa. Cada bolinho, recheado com vatapá, caruru, salada de tomates e claro pimenta, é vendido por R$1.50 sem o camarão e por R$2.00 com uma porção do crustáceo, conhecido pelos grandes sabor e preço. Como acompanhamento uma coca-cola bem gelada ou uma cervejinha mais gelada ainda, cai muito bem.
O acarajé na cultura africana é a comida preferida da orixá Iansã. A palavra acarajé vem de akara, vocábulo africano cujo significado é bola de fogo. O je quer dizer comer. Juntando as duas palavras temos o acarajé, comer bola de fogo. Esta prática tornou-se um vício entre baianos e turistas que visitam a capital baiana. E, praticamente, em cada esquina é possível se deparar com um tabuleiro. Hoje, segundo a associação das baianas de acarajé, existem mais de 4 mil vendedoras espalhadas por toda a Salvador. Setenta por cento delas são responsáveis pelo sustento da família. Na cidade que apresenta a segunda maior taxa de desemprego do país, a venda de acarajé não é só uma forma de valorização e perpetuação da cultura local, é um meio de sobrevivência para muita gente. Tanto é assim que os homens já procuram seu espaço nesta “nova” área de trabalho. Eles enfrentam o preconceito e tentam popularizar o gênero masculino da palavra “baiana”. É bom irmos nos acostumando com os baianos de acarajé. Com uma indumentária adaptada, eles não deixam a desejar na vestimenta e, tampouco, no sabor de seus quitutes.
Porém, elas, as baianas, ainda são os símbolos da Bahia. A tradição fala mais alto. Ícones de simpatia, bom humor e irreverência. Mulheres vaidosas, estas vendedoras não poupam esforços na caracterização. As longas saias rodadas, são complementadas por adereços como os panos da costa, a bata, o torso na cabeça e os colares com as cores dos seus orixás, trajes típicos da cultura africana, além de uma bela maquiagem. Tamanha sua importância histórica e cultural, as baianas são homenageadas no dia 25 de novembro, quando é comemorado o Dia da Baiana.
Muitas delas ganham fama por causa da mão cheia. Cira, Dinha e Regina são as mais vip’s. Elas construíram um império alicerçado na venda de acarajé. Seus estabelecimentos são badaladíssimos e atraem, principalmente, gente da classe média soteropolitana, turistas e muitos famosos. O acarajé nestes lugares chega a custar até R$4.00. Dinha está situada no tradicional e boêmio bairro do Rio Vermelho, onde viveu o escritor Jorge Amado e ainda reside sua esposa e também escritora, Zélia Gattai. O ponto de comércio foi herdado de sua avó Ubaldina e de sua mãe Rute. O Largo de Santana ou Largo da Dinha, como é popularmente conhecido, todas as noites, é tomado por centenas de pessoas em busca de lazer e do acarajé. O lindo pôr do sol, que pode ser visto do local, não consta no cardápio, mas é um complemento indispensável. “Eu sempre venho para cá. O ambiente é descontraído, gostoso, muito baiano”, fala a estudante Gabriela Albuquerque, 19 anos. Pessoas como Gabriela ajudaram Dinha a adquirir um grande patrimônio que incluem casas, automóveis e restaurantes. No mês passado a casa da baiana foi invadida por bandidos que levaram um de seus automóveis e 30 mil reais. A vendedora é a prova real do sucesso desse bolinho de feijão fradinho.
Muitos falam que vir à Bahia e não provar, ao menos, um acarajé é o mesmo de não ter vindo e esta afirmação, de fato, está repleta de sentido. Pela sua relevância cultural, o acarajé e, por conseguinte, as baianas, são partes integrantes dos encantos e dos mistérios da Bahia e do cotidiano dos baianos, que não encontram dificuldades para trocar os Big Mac’s da vida pelo sanduíche tipicamente baiano...