
“A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles 30 ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é a boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra.”
Logo após dizer esta frase, Dom Quixote foi arremessado para longe. Os trinta gigantes eram, como todos sabem, moinhos de vento. Retratado no mais universal dos romances, na maioria das vezes num mundo completamente avesso à nossa realidade, o cavaleiro andante teve adjetivos muito mais pejorativos do que ‘excêntrico’ ou ‘sonhador’. Dom Quixote é tachado de louco. Podemos rotular qualquer comportamento que foge à regra como loucura?
Por Fernando Galacine,
editor do JE em São Paulo
O Fidalgo retratado na obra de Cervantes, mesmo que num tom paródico, é um exemplo claro de como pessoas relativamente normais podem, num determinado momento, terem influências ou motivações para se comportarem como exceção dentro da sociedade. Quixote, que nem sempre foi Dom e atendia pelo nome Alonso Quixano, administrava suas terras na província de Mancha, zona rural de uma Espanha do século XVII, onde as novelas de cavalaria, assim como em toda a Europa, faziam muito sucesso. Alonso Quixano foi gastando aos poucos sua pequena fortuna nestes best-sellers medievais e por mergulhar tão profundamente nas histórias mais mirabolantes possíveis acabou se afogando em todas elas. Nascia aí o herói, conhecido no mundo inteiro, por várias gerações, há mais de 400 anos. Dom Quixote talvez seja a representação mais clássica de todo comportamento humano, gerado quase todo numa pessoa só. Quixote foge, a todo instante, à lógica do que conhecemos por normalidade.
Quem é normal?
Sempre tivemos, desde os primórdios da história, a necessidade de traçar regras e definir estruturas, quase todas, verdades incontestáveis, seja pelo interesse da religião, do poder ou da maioria. O parâmetro de normalidade segue a idéia desse último quesito, ou seja, de tudo aquilo que é o mais freqüente dentro de um determinado grupo de pessoas. Em outras palavras, tudo que é comum dentro duma determinada sociedade passa a ser o padrão de comportamento. O que não significa por as exceções na lista dos ‘anormais’. Para isso, é necessário considerar outro parâmetro: o valorativo.
É esse critério que considera se a tal exceção irá causar prejuízo ao indivíduo, considerado exceção e também à sociedade. No Brasil, por exemplo, a maior parte da população é cristã. Mas não é por isso que um indivíduo mulçumano será considerado anormal. Falta a ele o critério valorativo: seguir o islã, por esse parâmetro, não causará mal nem para o individuo nem para a sociedade. Apesar de não ser maioria, esse mulçumano será considerado normal pela sociedade. Toda a forma de destacar-se, sem por em risco o conjunto social e nem a si próprio, é venerável. Quem sai desse limite, passa a ser considerado excêntrico. Na maior parte dos casos, com o mesmo contexto do adjetivo de Dom Quixote.
Gostar de quem não gosta?
A jovem austríaca Natascha Kampusch estava indo para a escola, no início de 1998, quando foi seqüestrada. Após exaustivas buscas e nenhuma pista, Natascha foi dada como morta tanto pela polícia quanto pela imprensa européia. Oito anos depois, uma moça é vista correndo, extremamente magra e assustada, pelos corredores entre as casas do vilarejo de Strasshof, subúrbio da capital Viena. Era Natascha. Pouco tempo depois, um homem é encontrado morto numa linha ferroviária da cidade. Wolfgang Priklopil, seqüestrador de Natascha havia se suicidado. Esse caso, um dos mais longos seqüestros da história, tinha tudo para chamar atenção por si só. Mas essa história ficou secundária na medida em que o tempo passou.
As declarações de Natascha, disputadas a tapa por repórteres do mundo inteiro, especialmente os da Áustria, foi ganhando aos poucos mais notoriedade que o próprio caso.Declarações como esta caíram feito uma bomba para os que esperavam que, mesmo fragilizada, a jovem pudesse repudiar a vida que levou durante quase uma década. Mas para o espanto de todos, ela defendeu seu algoz e lamentou sua morte. Rapidamente uma explicação precisou ser dada.

Natascha tinha a Síndrome de Estocolmo, síndrome que faz a vítima, seja de qual ocasião for, demonstrar ou sentir afeto pelo seu agressor. O nome desta síndrome vem de um caso relatado na capital sueca, de mesmo nome: Estocolmo. Lá um assalto a banco fez com que vários reféns ficassem sob o poder dos criminosos durante seis dias. Assim que tudo terminou, esses reféns passaram a defender todos aqueles que puseram em prática o crime. E até mesmo houve casamentos entre vítimas e ladrões, após todos já estarem libertos, é claro.
Não tão longe assim
No entanto, Natascha, apesar de vítima, não teve suas declarações tão bem aceitas assim. Afinal, para boa parte das pessoas foi, e ainda é, complicado entender como alguém pode sentir pena, ou mesmo nutrir outros bons sentimentos por quem, na teoria, lhe fez mal. Ironicamente, poucas pessoas vêem situações muito mais próximas como provas que a tal síndrome não é tão distante assim. Para a Dr.ª Marisa Fortes, psicóloga do GORIP, Grupo de Resgate à Integridade Psíquica do Hospital das Clínicas, em São Paulo, casos familiares entram, a todo instante, nessa lista. “Essa síndrome pode sim ocorrer em ambientes familiares e é, inclusive, fenômeno comumente observado em mulheres que sofrem maus-tratos dos maridos e crianças vítimas de abusos sexuais por membros da família.

Foi observado também nos campos de concentração. Note que envolve situações de extrema violência e que envolve a certeza por parte da vítima de que pode ser morta ou seriamente ferida por seu agressor” e completa: “Não se refere apenas de evitar uma "repressão" do agressor, mas sim de evitar algo muito grave, neutralizar uma possibilidade de morte”. Natascha ainda hoje, após um ano de sua libertação, apresenta uma enorme dificuldade de socialização. Numa entrevista, em suas férias na Espanha, há dois meses, Natascha comentou um pouco mais sobre sua história. "Ele era apenas uma pobre alma perdida. O que ele me fez foi além do aceitável, algo que não desaparece e que sempre volta nos meus pensamentos. Eu tento trabalhar e viver com isso da melhor maneira possível” e acrescenta, "Ainda vai demorar muito para que eu consiga confiar em alguém”.
A loucura das artes
Ele não tinha amigos, só o irmão, a quem escreveu inúmeras cartas durante toda a sua vida. Nelas provavelmente contou como se apaixonou por uma jovem enquanto trabalhava em Londres, na filial duma renomada galeria parisiense e que por não ser correspondido passou a enxergar na religião uma válvula de escape para a primeira de algumas outras decepções amorosas que viria a ter. Vincent Williem van Gogh contou muito mais do que isso para o seu irmão Theo, apelido de Theodoro, nas cartas que enviava dos mais diferentes lugares da Europa nos quais viveu. Sempre incompreendido em todos eles, pelas mais diversas razões.
Certa vez, por volta dos trinta anos, van Gogh apaixonou-se pela prima recém-viúva, muito presa à memória do marido. Para provar seu amor, van Gogh pôs, literalmente, sua própria mão no fogo. O que não comoveu sua amada. Van Gogh mais uma vez foi desprezado. Após alguns anos, em 1885, van Gogh mudou-se para Paris, onde fez diversos elogios à cidade Luz e onde também mudou as cores e seu estilo de pintar. Não demorou muito para o pintor retratar tudo o que disse e se mudar para a Arles, uma aldeia ainda na França. Lá, numa explosão de amarelos que tomaram conta de suas telas, van Gogh sentia-se feliz. Longe de todos, longe da sociedade. Sentiu-se tão bem, que pintou como nunca. Em menos de um ano Van Gogh fez quase 200 quadros e mais de 100 desenhos. Sua mente não agüentou.
O gênio chegou a ser internado, cortou parte da própria orelha após uma briga, e foi morar ainda mais distante, desta vez por recomendação médica, na cidade de Auvers-sur-Oise. No final de Julho de 1890, aos 37 anos, van Gogh caminhou para um trigal. Deu um tiro em seu peito. Dois dias depois a trajetória de um dos maiores gênios da pintura, reconhecido só anos depois, chegava ao fim.
Perdido na imensidão
Ao analisarmos a vida de van Gogh, é inegável não perguntar-se até que ponto a sociedade ou ambiente que vivemos podem influenciar nos transtornos emocionais sejam eles maiores ou menores do que os do pintor holandês. Para o Dr.º Manuel Antônio Mascarenhas, psiquiatra responsável pela Clínica Ana Maria Popovic, ligada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC, o ambiente pode influenciar para o agravamento ou até surgimento de transtornos emocionais, mas não é determinante. “O ambiente não é o principal e nem age isoladamente. Há uma série de fatores que podem contribuir como a própria estrutura mental da pessoa, fatores biológicos ou um histórico familiar.” E completa: “Às vezes esses transtornos se dão pela própria adaptação da pessoa com o ambiente, ou sua própria vida. Ele pode não ter doença alguma, mas não soube se adaptar. Tenho pacientes que vieram do interior, caíram numa megalópole, como São Paulo, e não se acostumaram. Daí a sociedade daqui os considera desajustados, o que não é verdade”. Se formos analisar por esse sentido, van Gogh também fez o caminho descrito acima, saindo do interior de um vilarejo holandês, onde nasceu, indo, aos 15 anos, para Haia, a segunda maior cidade do país, perdendo apenas para Amsterdã. Foi justamente a partir dessa fase de sua vida que o artista a passou ter uma vida conturbada o que foi aumentando à medida que era transferido para centros urbanos, como Bruxelas e Londres.
Quem era o louco?
Talvez a sociedade da época não estivesse sendo tão cruel com van Gogh, e muitos outros, quando o fazia se sentir incompreendido. A forma de pensar da sociedade, que conseqüentemente refletiu-se na psiquiatria, não tinha nem sequer a metade do conhecimento que possuímos hoje sobre os assuntos ligados ao emocional e à mente. Técnicas absurdas eram usadas para combater diagnósticos completamente equivocados. Na época de van Gogh, por exemplo, seções de afogamento eram freqüentes.
Os pacientes ficavam submersos em água até que não houvesse mais bolhas de ar subindo para a superfície. A idéia do tratamento era simples: permitir que o paciente tivesse suas funções vitais paradas e recuperadas, o que o motivaria a comportar-se de melhor forma. A luta antimanicomial, no inicio dos anos 60, mudou muita coisa nesse sentido. Os considerados ‘loucos’ não eram mais submetidos a inúmeros tratamentos incrivelmente desumanos.
A necessidade de manter manicômios estava sendo, aos poucos, extinguida. Os chamados antipsicóticos eram, em parte, responsáveis por tudo isso. Cabia agora a medicina diagnosticar o problema e tratá-lo com o medicamento correspondente que existisse no mercado. O que com o passar do tempo virou mania pós-moderna. “Hoje depressão virou jargão”. Diz Dr.º Mascarenhas. “Todos acham não podemos ficar mais tristes. Todos condenam qualquer tristeza à melancolia, a algo ruim. Cada vez mais médicos tentem classificar os sentimentos como patológicos, pelo simples fato de tentar acalmar o paciente, que quer sair do consultório com algum diagnóstico, nem sempre confiável” conclui o psiquiatra.
Onde está a loucura?
Dizendo que ouvia Tum-tum, o professor da Faculdade de Direito e Psicologia de Standford, nos Estados Unidos, David Rosenhan decidiu fingir-se de louco. No início da década de 70, ele, como mais oito voluntários, se auto-internaram em clínicas psiquiátricas, mentindo apenas no único sintoma que apresentou: o som de ‘Tum-tum’. Rosenhan foi diagnosticado com esquizofrenia e internado. Dez anos antes, o célebre matemático John Nash, retratado no filme “Uma mente brilhante” (Beautiful Mind) estrelado por Russell Crowe e ganhador do Oscar de melhor filme, em 2002, também havia sido internado com diagnóstico de esquizofrenia. Ao contrário do professor Rosenhan, Nash realmente tinha a doença, a mais comum das psicoses e entre outros casos vividos ao longo da doença, chegou a dizer que mantinha contato com alienígenas que se comunicavam através do segundo editorial do The New York Times, as quais só ele poderia decifrar.
Nash, assim como Rosenhan, ficaram internados durantes dias. O matemático levava eletrochoques, como forma de tratamento. Rosenhan descrevia em suas pranchas de anotações o relaxamento que funcionários tinham com seus pacientes. Quando Rosenhan foi finalmente liberado da clínica com o diagnóstico de esquizofrenia em remissão, escreveu toda sua experiência no artigo ‘Sobre ser são em locais insanos’, publicado na revista científica Science, em 73. Ele diz: “ Uma vez marcado como esquizofrênico, não há nada que o paciente possa fazer para superar essa etiqueta.”
Afinal, quem é louco?
No entanto, no início da década de 90, quase trinta anos convivendo quase sem trégua com sua doença, John Nash tem uma incrível recuperação e remissão da doença. Alguns anos mais tarde, Nash ganhou, em 94, o Prêmio Nobel que dividiu com mais dois colegas devido a uma fórmula matemática, sobre a teoria dos jogos. Nash surpreendeu a todos pela sua postura séria e calma durante a entrega do Prêmio. O hoje, ele dá aulas no departamento de matemática na Universidade de Princeton, no Estados Unidos. Prova de que se realmente existe, a loucura não é empecilho para ninguém. E que talvez a gente não tenha notado que podemos ser nós, e toda a sociedade, a figurar no papel que era dado ao cavaleiro andante e que o excêntrico da história não é Dom Quixote.
Onde está a loucura?
Dizendo que ouvia Tum-tum, o professor da Faculdade de Direito e Psicologia de Standford, nos Estados Unidos, David Rosenhan decidiu fingir-se de louco. No início da década de 70, ele, como mais oito voluntários, se auto-internaram em clínicas psiquiátricas, mentindo apenas no único sintoma que apresentou: o som de ‘Tum-tum’. Rosenhan foi diagnosticado com esquizofrenia e internado. Dez anos antes, o célebre matemático John Nash, retratado no filme “Uma mente brilhante” (Beautiful Mind) estrelado por Russell Crowe e ganhador do Oscar de melhor filme, em 2002, também havia sido internado com diagnóstico de esquizofrenia. Ao contrário do professor Rosenhan, Nash realmente tinha a doença, a mais comum das psicoses e entre outros casos vividos ao longo da doença, chegou a dizer que mantinha contato com alienígenas que se comunicavam através do segundo editorial do The New York Times, as quais só ele poderia decifrar.
Nash, assim como Rosenhan, ficaram internados durantes dias. O matemático levava eletrochoques, como forma de tratamento. Rosenhan descrevia em suas pranchas de anotações o relaxamento que funcionários tinham com seus pacientes. Quando Rosenhan foi finalmente liberado da clínica com o diagnóstico de esquizofrenia em remissão, escreveu toda sua experiência no artigo ‘Sobre ser são em locais insanos’, publicado na revista científica Science, em 73. Ele diz: “ Uma vez marcado como esquizofrênico, não há nada que o paciente possa fazer para superar essa etiqueta.”
Afinal, quem é louco?
No entanto, no início da década de 90, quase trinta anos convivendo quase sem trégua com sua doença, John Nash tem uma incrível recuperação e remissão da doença. Alguns anos mais tarde, Nash ganhou, em 94, o Prêmio Nobel que dividiu com mais dois colegas devido a uma fórmula matemática, sobre a teoria dos jogos. Nash surpreendeu a todos pela sua postura séria e calma durante a entrega do Prêmio. O hoje, ele dá aulas no departamento de matemática na Universidade de Princeton, no Estados Unidos. Prova de que se realmente existe, a loucura não é empecilho para ninguém. E que talvez a gente não tenha notado que podemos ser nós, e toda a sociedade, a figurar no papel que era dado ao cavaleiro andante e que o excêntrico da história não é Dom Quixote.
Leia a Entrevista com a Dr.ª Marisa Fortes na íntegra. Clica aqui.