Por Malu Fontes
Santa Clara, padroeira da televisão, ficará com a agenda abarrotada nas próximas semanas, tamanho o fluxo de desesperados que lhe acorrerão acometidos pela overdose de imagens e textos sobre tudo o que se refira às Olimpíadas. Uma coisa pode atenuar o cansaço mental dos telespectadores submetidos a tantas horas de programação olímpica, nos canais abertos e fechados: depois dessas olimpíadas, qualquer brasileiro de nível cultural mediano chegará a setembro sabendo muito mais sobre a China do que os chineses.
DITADURA - Isso ocorre graças a dois fatores. Para preencher a grade da programação voltada para a cobertura olímpica, haja matérias e grandes reportagens sobre a vida na China e quaisquer hábitos ou características da vida dos chineses. E são justamente essas matérias que impedem a morte do telespectador de tédio, pois ninguém suportaria tantas horas seguidas de imagens de atletas, estádios, discursos sobre recordes, equipes, etc. Por outro lado, a China é uma ditadura onde liberdade de expressão é palavrão, o que faz com que os chineses saibam muito pouco sobre o próprio país.
Nessa semana, em uma matéria televisiva sobre o histórico protesto na Praça da Paz Celestial, quando um anônimo jovem mirrado enfrentou sozinho um tanque militar, ficava claríssimo que todo o mundo tinha aquela cena no imaginário, exceto os chineses, pois os meios de comunicação local não produziram ou veicularam uma vez sequer imagens e comentários sobre o assunto. A China é uma ditadura com características indizíveis, mas o mundinho civilizado fica oficialmente caladinho sobre as aberrações que se comete lá contra os direitos humanos. O motivo do silêncio são os bilhões de dólares e euros que ela ajuda a gerar, importando e exportando, dos e para os países ricos. Fosse uma ditadura africana pobre ou um pedaço de chão miserável em outro canto do mundo o tratamento dado a ela seria infinitamente diferente.
LAOWAI E ABORTO TARDIO – Quem detesta olimpíadas, mas acha primorosas aquelas matérias sobre detalhes da vida cotidiana chinesa, pode aproveitar o inverninho generoso para ler de um fôlego só o excelente livro da jornalista global Sônia Bridi, durante dois anos corresponde da Globo em Pequim, juntamente com Paulo Zero, cinegrafista, seu marido e há décadas atuando como correspondente internacional na emissora. O livro chama-se Laowai – Histórias de uma repórter brasileira na China. Laowai significa Estrangeiro, em Mandarim, a língua majoritária chinesa.
Afora isso, resta na televisão o mais do mesmo: a violência urbana brasileira transformando os telespectadores mais sensíveis em masoquistas, uma vez que é impossível consumir TV sem ser informado de assassinatos por atacado. No Rio, a coisa é tão feita que os telejornais já se dão ao luxo, há muito tempo, de adotar como regra não informar sequer os nomes dos mortos. São apenas "criminosos em confronto com a Polícia". Todos sem nome, vida, família e muito menos futuro. Não chegam sequer a serem encaradas pela sociedade civilizada como mortes, mas como antecipação de inexistências sem futuro, uma espécie de aborto tardio de rebotalhos do capitalismo.
CRIATIVIDADE NÃO, CRISE – No campo do entretenimento, a violência também correu solta e as donas de casa boazinhas que amolecem o coração com mocinhas vitimadas como aquelas que Janete Clair criava tão bem estão à base de calmantes desde a última terça-feira, quando a doce e sofrida Flora (Patrícia Pillar) deu uma guinada de 180 graus e, de vítima, passou a uma psicopata quem em apenas um capítulo por pouco não chegou a serial killer em A Favorita. Num flash back de 18 anos atrás, Flora disparou uma saraivada de tiros no pai de sua filha. Achando pouco, o autor a fez terminar o capítulo, já em tempo real, disparando mais balas no peito do Dr. Salvatore (Walmor Chagas). Tudo com um jeitão de psicopata matador, sorrindo, gargalhando, achando tudo ótimo.
Quem acompanha a trama e acha tudo isso é sinônimo de criatividade, ou atribui o fato às novas estratégias de criação dramatúrgica, com "o final" da novela (a revelação da identidade da assassina) se dando no meio da trama, é bom aterrissar. A mudança brusca e exagerada da identidade de Flora foi determinada não pela criatividade, mas pela crise na audiência da novela. É produto da necessidade do mercado diante da falta de desejo do público até então pela trama. Certamente, A Favorita não nasceu, na mente de João Emanuel Carneiro (autor), com Flora sendo uma assassina fria. A sua eleição para o papel de bandida foi um bote salva-vidas para tentar alavancar o ibope em baixa. A saída foi terminar a novela no meio e começar outra dentro da mesma. Com cinco meses pela frente, é bom Carneiro "se virar nos 30", a la Faustão.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 10 de agosto de 2008. maluzes@gmail.com