sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O Estado Ressuscitado

Por Malu Fontes

Dia sim e outro também os telejornais, os programas de entrevistas, painéis, mesas redondas de estúdios e que tais travam entre especialistas discussões sobre os papéis das instituições, as soluções políticas para os nós da sociedade e os desafios da humanidade. São comuns, tanto as perguntas quanto a falta de respostas eficazes para questões como: qual o papel da família, qual o papel do estado, qual a função da escola, qual o papel do professor? Como se ainda houvesse essas categorias isoláveis de maneira absoluta, a família, a escola, o professor e não novas construções cada vez mais inconsistentes.

As idéias pré-concebidas ou encravadas em cada um sobre papéis sociais e institucionais não fazem mais sentido para a complexidade do mundo de hoje. No entanto, é por demais desconfortável para qualquer suposto detentor de saberes admitir que já não existam respostas prontas e simplistas para perguntas dessa natureza. As eventuais respostas serviam para um ontem e há muito perderam a validade.

DEUS COMBALIDO - Talvez para aceitar que não há mesmo mais quaisquer respostas prontas para nenhuma pergunta sobre os papéis até ontem atribuíveis a essa ou aquela instituição, só mesmo esse confronto com a derrocada fulminante ao deus mais cultuado dessa virada de século: o todo poderoso mercado, agora troncho, combalido e cambaleante. A crise econômica experimentada pelas economias mais sólidas do mundo até ontem monopolizou nas últimas semanas todo e qualquer repertório da programação dita séria da TV.

Até o fim da Guerra Fria, enterrada com a queda do Muro de Berlim em 89, a geopolítica mundial era claramente bipolar. Uma banda do mundo ancorava-se no socialismo soviético, que ruiu tal qual uma montanha de papéis carcomidos por traças; a outra se ancorava no capitalismo de inspiração norte-americana. Nos últimos anos, prevaleceu a unipolaridade, com o neoliberalismo em grau último ditando regras e empalidecendo, até mesmo desmoralizando a passos largos, a idéia de estado. Quem não ouviu, viu ou leu algo sobre a necessidade vital de o mundo ter um estado mínino?

DAR DE OMBROS - Pois bem, agora uma novíssima ordem mundial entrou em cena em alto estilo, colocando de pernas para o ar todas as pitonisas deslumbradas do neoliberalismo e os defensores incontestes do livre mercado e do estado mínimo. Pelo andar da carruagem o que ta em crise é a tal bipolaridade e morre quem souber o que dará lugar a ela. Assiste-se, dizem alguns, a uma espécie de reedição do declínio do império romano no século XXI. Nada como um dar de ombros da história. Os americanos, pendurados em dívidas hipotecárias com suas casas clean de subúrbios que o mundo aprendeu a invejar nos filmes de Hollywood, levaram uma rasteira orçamentária, deixaram de pagar suas contas e o mundo virou-se pelo avesso.

Só mesmo isso para Mírian Leitão perder o posto de pitonisa, de quem sabe tudo que vai acontecer amanhã com os humores do tal mercado. Na última quarta-feira abriu seu comentário no Bom Dia Brasil com uma perguntinha ordinária ao apresentador Renato Machado, um questionamento tão profundo, tratando-se da dama de ferro da economia do telejornalismo brasileiro, quanto aqueles da dona de casa simplória que pergunta à próxima da fila da padaria aonde vão parar os preços das coisas, por falta do que dizer: que crise é essa, Renato, que não tem fim?! Se ela não sabe, o mundo esclarece. Não é mais crise. É pânico. Instalado na parte do corpo mais sensível da humanidade, como se diz no popular, ou seja, no bolso.

MORTADELA - Quem saiu do discurso e foi para as ruas gritar e denunciar que a coisa está feia para além do suportável foi a população de Hong Kong, exigindo seu dinheiro de volta, aquele que sumiu dos bancos. No entanto, o mais significativo disso tudo é como se revela frágil e de pés de barro o grande deus dos séculos XX e XXI, o mercado. Os governos, que até ontem, para os ricos do mundo, só serviam para atrapalhar e deveriam se resignar à sua insignificância, saindo de cena o máximo possível, acabam de ser ressuscitados. Os grandes impérios econômicos mundiais estão agora ajoelhados sobre buracos e rombos implorando que o governo, o estado, dê-lhe toneladas de bilhões de dólares e euros para não sucumbirem de vez.

É essa a consistência do discurso neoliberal. Quando o mercado produz dinheiro a partir de dinheiro, sem sequer passar pelo sistema produtivo, o estado é um aleijão, um pai velho e imprestável que deve se recolher ao pijama e ao silêncio. Quando a economia dos impérios desaba – sem que o estado tenha movido um dedo para isso – corre-se para a barra da calça do imprestável caduco, cujo dinheiro, é bom lembrar, não é outro senão o do contribuinte. Nesse cenário, nada como as metáforas imperdíveis do presidente Lula: agora que os países de economias emergentes estavam comendo seu pãozinho com mortadela, os gigantes do mundo do dinheiro que não venham para cá querer que se coma o pão que o diabo amassou lá na ciranda econômica deles.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 12 de outubro de 2008. maluzes@gmail.com