segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Vítimas da própria ganância

São raros os meses em que não se vê na televisão ou nos cadernos de segurança dos jornais vítimas traumatizadas, empobrecidas ou até mesmo mortas em conseqüência da ação de quadrilhas de estelionatários que atraem pessoas bem intencionadas e com algum dinheiro para armadilhas. O golpe consiste em criminosos anunciando nos jornais produtos caros a preços módicos, às vezes por menos da metade do preço, ou em pessoas de boa aparência nas imediações de agências bancárias querendo às pressas trocar bilhetes premiados de loteria e coisas do gênero por quantias menos volumosas em virtude de uma alegada pressa ou desespero para viajar.

Em sua edição da última terça-feira, o Jornal Nacional veiculou mais uma dessas matérias em que a ganância travestida de bons propósitos em pessoas de bem aparentemente terminou com uma tragédia. Um empresário de Goiânia, usuário de muletas, em idade avançada, está desaparecido há seis meses e tudo leva a crer que foi assassinato por uma quadrilha de estelionatários. Foi visto pela última vez no dia em que comprou uma passagem aérea com destino a São Paulo, atraído pela possibilidade de comprar um carro importado, anunciado em jornal por trinta por cento a menos que o preço de mercado. Horas após chegar à capital paulista, telefonou para a família pedindo dinheiro, já seqüestrado pelos 'anunciantes' do carrão. Embora a família tenha feito a transferência de alta quantia de dinheiro para uma conta determinada pelos seqüestradores, o velhinho nunca mais foi visto e a chance de estar vivo é tão grande quanto a de comprar carros importados pela metade do preço em uma situação lícita.

HIPOCRISIA - A questão a ser desconstruída é quem é mais ordinário nesse tipo de golpes que a imprensa, televisiva e impressa, veicula todos os dias. Um dado em comum entre as vítimas que caem nesses contos da carochinha da ganância é o fato de todas elas terem mais dinheiro que a média da população. Outro aspecto, que raramente a hipocrisia da família gosta de admitir é o fato de a ganância de todas elas ser diretamente proporcional à astúcia dos ladrões.

O que se tem nesses episódios é uma equação redondinha, na qual os dois lados querem se dar bem à custa das facilidades que o outro proporciona. Como onde há dois espertos um deles sempre acaba se dando mal, geralmente são os criminosos profissionais que passam a perna nos gananciosos que sequer admitem que o são.

Onde já se viu encontrar por aí, por acaso, uma alma simplória e dadivosa com um bilhete premiado querendo-o trocar por menos da metade do valor atribuído?

TORPEZA BILATERAL - Não é à toa que o sub-registro (a não prestação de queixa nas delegacias por parte de quem é lesado) nesses casos é altamente significativo. As vítimas, uma vez enganadas, e enganadas por si mesmas, simplesmente têm vergonha de ir à polícia, pois a evidência de sua ganância é de uma obviedade que dispensa raciocínios. Essa constatação é tão óbvia que há pouco tempo a justiça e o campo do direito deram um nome singular para essa tipologia de crime: torpeza bilateral. Sim, bilateral, pois o que a vítima pretende, desde que dá o primeiro passo para abrir a guarda a desconhecidos que lhes oferecem vantagens a baixo custo, é se dar bem a qualquer custo e, com tal intento, costumam considerar-se mais espertos que o mundo. E ferrados é como quase sempre acabam aqueles que se acham mais espertos que o mundo.

GAROTA N. – Saindo da torpeza e indo para a baixeza nossa de cada dia, como se previa, o circo em torno do cárcere e da morte de Eloá continua gerando seus espetáculos. O pai, ainda foragido, agora é acusado de ter matado degolada em um canavial uma ex-mulher, numa estratégia de queima de arquivo. Ana Maria Braga e seu rosto como se plastificado de papel celofane de tão esticado, na edição de segunda-feira superou em audiência todos os seus concorrentes. "Como atração, a loura do papagaio de espuma apresentou uma entrevista com a amiga de Eloá, Nayara, agora de modo ridículo descrita e identificada em textos de alguns veículos de imprensa escrita como 'a garota N.", já que crianças e adolescentes, protegidos por lei, têm o direito de não ter seus nomes e imagens veiculados na imprensa. Mas agora, que até as ratazanas de esgoto decoraram seu nome inteiro de tão veiculado que foi?

E em mais uma prova de que baixaria tem lugar cativo no mundo das notícias, poucos assuntos tiveram mais repercussão que os braços quebrados da camareira de Luana Piovani. A moça foi agredida por aquele primor de ser humano chamado Dado Dolabella, que até há pouco reaparecia em cena como o príncipe reencantado da moça, com quem casaria e em quem faria um filho até março. Em seu blog, locus em que celebridades agora anunciam de gravidez, a rompimento e crises, Luana agradeceu a Deus por ter se livrado de uma 'roubada' antes do casamento. Ora, e desde quando é surpresa que gente do quilate de Mr. Dolabella é tão roubada quanto os anúncios e os golpes que caracterizam o crime de torpeza bilateral?


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 02 de novembro de 2008. maluzes@gmail.com