quinta-feira, 20 de agosto de 2009
30 anos de guerra civil após a invasão soviética: o Afeganistão é uma terra em que a violência ainda se faz presente e o medo é presença marcante em todos os que ali permaneçam, sejam eles os próprios afegãos ou profissionais encarregados de compartilhar com o mundo suas impressões em relação aos fatos e aos acontecimentos constantes, que acabam se limitando à exploração de métodos bárbaros na busca pela ascensão no poder.
Por Egnaldo Lopes
editor do JE em Goiânia
Independente do dito fundamentalismo religioso ou de qualquer outro rótulo que coloquem para definir ou justificar a miséria e a violência naquele país, a realidade de vivenciar ataques, seqüestros e o medo, essencialmente, é uma experiência, sobretudo, única e, portanto, merecedora de destaque e discussões. Poucos jornalistas brasileiros se aventuraram a cobrir a guerra civil que acontece no Afeganistão durante todos estes anos, mas a recente visita de Adriana Carranca, do jornal Estado de S. Paulo, no fim de 2008 pode ser referência do quanto vem se tornando difícil a transmissão da notícia em determinadas partes do mundo em que a mulher, inclusive, sofre reprimendas comportamentais que dificultam o trabalho jornalístico.
O desafio de desenvolver um trabalho num lugar como este, em que as características da democracia não são nem de longe perceptíveis foi idéia da própria jornalista disposta a conhecer de perto a realidade dos afegãos para transmitir à sociedade os fatos, dando enfoque aos direitos humanos e toda a problemática social que envolve aquela região do planeta. Mestre em políticas sociais pela London School of Economics, Adriana fala com o entusiasmo de quem quer compartilhar informações em todas as vezes que dá entrevistas relacionadas à sua ida ao Afeganistão, pois passa com riqueza de detalhes os acontecimentos e as características mais pertinentes à análise dos fatos.
As dificuldades de reportá-los não é novidade, já que recentemente foi também ao Irã, o que rendeu um caderno no Estadão. Aliás, há um especial no portal do jornal que reúne todas as informações trazidas do Afeganistão por Adriana, onde é possível ver também várias fotos que a repórter tirou no país durante a viagem.
A capital do país pode dar a impressão de que as coisas estão sob controle, a despeito da presença do poder policial em toda a parte na expectativa constante de encontrar novos homens-bomba prontos a atacar: “Cabul é a capital afegã, cidade de 4 milhões de habitantes, que concentra também todas as embaixadas, escritórios das Nações Unidas, agências de notícias. Então, essa efervescência toda dá aos visitantes uma certa sensação de segurança. Mas, é claro, é uma sensação falsa porque estamos em um país em guerra.”, contou Carranca com exclusividade ao JE Informa.
O repórter do New York Times, David Rohde, sabe bem o que é ver o medo virar realidade e a situação de caos invadir a vida pessoal, além dos limites que muitos podem querer colocar durante a cobertura jornalística; Rohde, o jornalista afegão Tahir Ludin e o motorista Asadullah Mangal foram seqüestrados pelo Taleban em novembro do ano passado, um mês antes do desembarque de Adriana Carranca.
Na busca por preservar a vida do repórter em poder do grupo afegão, o jornal norte-americano decidiu não dar destaque midiático ao assunto: “Desde os primeiros dias deste calvário, a opinião prevalecente entre a família de David, especialistas em casos de sequestro e oficiais de vários governos, além de outros que consultamos, foi de que tornar público [o sequestro] poderia intensificar a situação de perigo para David e os outros reféns”, disse o editor executivo do N.Y.T., após a fuga do repórter em junho, após sete meses de confinamento, quando todo o caso veio à tona pela grande mídia.
O Taleban (os que estudam o Corão, na etimologia da palavra), grupo político que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001, que luta hoje pela retomada do poder, numa guerra constante contra a invasão dos Estados Unidos e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), representa a ameaça de morte. Já às 21h não é mais possível avistar alguém nas ruas de Cabul, conforme diz a jornalista do Estadão, que narra também a precariedade em que vive a população afegã: “[...] são os afegãos que mais sofrem com esse conflito e com as conseqüências dele, como seqüestros (não apenas pelos taleban, mas motivados pelo dinheiro do resgate, como no Brasil), atentados à bomba etc. Então, à noite, realmente as pessoas se refugiam em casa. Há muitos guardas nas ruas e eles fazem bloqueios para vistoriar os carros em busca de armas e bombas, então, isso é outro fator limitante. Mas, não é só a violência que mantém os afegãos em casa. É também a pobreza. O transporte público é caótico, a maioria não tem carro, o abastecimento de energia elétrica é quase nulo – quando eu estava em Cabul, só havia luz durante 4 horas a cada dois dias – e não há muito com o que se divertir em um país em guerra.”
2009 é ano de eleições presidenciais no Afeganistão; o ocidente apóia a reeleição de Hamid Karzai e o presidente Obama quer estabelecer uma política em que se desenvolva a confiança do povo afegão em relação aos americanos. Os taleban, com seus interesses em jogo, já declararam que aceitam um cessar-fogo durante as eleições, no próximo dia 20. “A guerra lá foi [re]iniciada após o 11 de setembro para caçar Osama Bin Laden.
O que a imprensa ainda não conseguiu esclarecer, e nem os afegãos entendem, é como as mais de 40 nações desenvolvidas, ricas e com armamento de primeira não conseguiram até agora vencer essa guerra contra os taleban. As forças de coalizão caíram em descrédito e seu aliado governo é acusado de corrupção endêmica. Outro fator é que, por muitos anos, e até agora, a ofensiva só teve foco na luta armada e não na aproximação com o povo afegão e muito menos nos esforços de reconstrução do país como prometido.”, relata Carranca.
O destaque dado ao ataque ao World Trade Center realmente colocou o Afeganistão no alvo de curiosidades de muita gente em todos os cantos do mundo, visto que Osama Bin Laden encontrou abrigo entre os taleban, numa associação informal com a Al Quaeda, aproximação esta que serviu de inspirações para as atitudes cada vez mais extremadas do Taleban; os ataques com homens-bomba no centro das maiores cidades são cada vez mais freqüentes no país e a população fica no meio disso tudo: entre o governo estabelecido com o apoio americano e os ataques do grupo extremista.
Culturalmente, aqui nas Américas, pouco se conhece daquele povo; recentemente, virou filme o best seller ‘O Caçador de Pipas’ que mostrou o comportamento dos afegãos frente às adversidades do local, numa história centrada no relacionamento de amizade entre dois garotos afegãos que vivenciaram diversos períodos da guerra no país durante este trinta anos.
Farhad Peikar e Adriana Carranca, durante reportagem no Afeganistão/ Arquivo Pessoal
Jornalistas afegãos como Farhad Peikar cumprem seu papel trabalhando para a imprensa estrangeira. Peikar escreve para o CNN e uma agência de notícias alemã; ele foi o companheiro de Adriana Carranca durante a visita ao Afeganistão, guiando-a e auxiliando-a, já que se para um jornalista pode ser difícil trabalhar naquele país, imaginem para uma mulher. Permanece o hábito do uso da burca entre as afegãs, mas as estrangeiras poderem andar livremente pelas ruas sem utilizar do adereço, embora seja preferível a jornalistas que queiram passar despercebidas, facilitando seu trabalho, confundindo-se com as mulheres do país.
Outros jornalistas vem desenvolvendo um trabalho de luta constante pela informação, talvez neste campo, pelo menos, as coisas tenham evoluído em relação ao tempo do governo taleban.
Socialmente falando, entretanto, vê-se que muita coisa não mudou durante esse tempo; a jornalista Ana Paula Padrão, relata em seu site, sobre sua ida ao Afeganistão em 2001: “Os sequestros tem sido frequentes, postos policiais já estão em toda a parte, e a insegurança volta a dominar a cidade. [...] Foram 12 dias de trabalho muito sofrido. Naquele momento, era impossível registrar a derrocada talibã sem dividir com o povo afegão as privações do pós-guerra. Deixei o país abatida, exausta e muito magra.”
E Adriana Carrana, recém chegada: “Hoje, a situação dos afegãos é muito pior do que nos tempos do taleban, porque além de toda a miséria que já estava lá, a violência é maior, sem dúvida. [...] Enquanto os estrangeiros estão lá fazendo uma guerra contra um inimigo que ninguém mais sabe quem ou o que é, os afegãos ainda travam uma batalha diária simplesmente para ter o que comer. A expectativa de vida no país é de 40 anos.”.
Inúmeros são ainda, os casos de seqüestros e mortes de jornalistas que arriscam a vida numa jornada que sabem, pode ser sem volta, simplesmente por andar em solo afegão. Hoje ainda sofrem diariamente pessoas atingidas por minas terrestres e o número de amputados é grande. Talvez não haja em qualquer outro lugar do planeta um lugar com tamanha gama de adversidades e empecilhos ao desenvolvimento da notícia, mais pela falta de condições de sobrevivência do que qualquer outra maneira de se impedir o trabalho do repórter. Os veículos de comunicação brasileiros não tem correspondente fixo no Afeganistão e vez ou outra algum jornalista aceita o desafio de passar um período ali para buscar retratar aquela realidade vivenciada temporariamente.
Atualmente, o jornalista Igor Gielow é o enviado da Folha de S. Paulo ao país e relatou no último sábado, dia 15, como foi o ataque Taleban em Cabul que resultou na morte de 7 pessoas e deixou quase uma centena de feridos: “Tudo tremeu com a onda de choque, janelas, móveis. Literalmente é possível sentir o deslocamento de ar da explosão passar em torno de você.”. O risco é constante. O número de abstenções nas eleições do dia 20 pode ser grande após este ataque, mesmo com a declaração de cessar-fogo, tendo em vista que nunca se sabe quais as reais intenções dos líderes do Taleban.
Ana Paula Padrão, nas montanhas em Cabul, em 2001 / Site Ana Paula Padrão
Internacionalmente, há a busca cada vez maior em se desenvolver a notícia: “Com a escalada da violência, as empresas de comunicação procuram manter o menor numero possível de jornalistas estrangeiros no país, o que é bom para os afegãos porque lhes garante emprego. Pelo menos, isso. Agora, o povo afegão, em geral, não tem acesso a nada.”, acrescenta Carranca, ao JE. De seu ponto de vista, a solução para a problemática social no país poderia estar no investimento direcionado em melhorias à população afegã; “Levar ao povo infra-estrutura, escolas, assistência à saúde, qualidade de vida, a possibilidade de troca entre culturas, emprego. Até os taleban se renderiam aos benefícios. Porque, veja, quem são os taleban? São filhos de refugiados do regime soviético retirados de suas famílias e criados isoladamente em escolas religiosas. Essas pobres crianças são, hoje, os temidos líderes dos taleban!”.
Trabalhar no Afeganistão, seja qual for a profissão, é sempre um desafio. Buscar relatar os fatos então é sempre a vivencia angustiada do repórter que quer dar voz aos dois lados da notícia, já que é inacessível, hoje, a conversação pacífica com os líderes de um dos lados desta guerra atual, mesmo após tantos anos. Já há uma geração de pessoas que não sabem o que é viver em paz, que não entendem o motivo de tantos e constantes conflitos e muitas das vezes nem procuram entender, pois não conhecem outra realidade. No meio disso tudo, o jornalista tem que fazer verdadeiro trabalho investigativo na tentativa de passar os fatos além do que é barrado, sobretudo, pelo instinto de sobrevivência.
+Conteúdo
[]Entrevista na íntegra com Adriana Carranca
[]Especial do Afeganistão no portal do Estadão
[]Relato de Igor Gielow na Folha
[]Veja o perfil da entrevistada para essa reportagem