quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Bate Papo com Adriana Carranca

Bate Papo com Adriana Carranca

Vistos Irã e Afeganistão já carimbaram o passaporte de Adriana Carranca, jornalista d' O Estado de S. Paulo. Visitando países onde o preconceito contra a mulher é enorme, a repórter do jornal paulista fala com exclusividade sobre sua viagem ao Afeganistão, no ano passado, e que originou entre cadernos especiais e inúmeras palestras sobre o assunto uma exposição de fotos que retratam as duras paisagens de um Outuno em Cabul.


Adriana Carranca, no deserto do Afeganistão


Por Egnaldo Lopes,
editor do JE em Goiânia

JE Informa - Você escreveu, quando no Afeganistão, que já às 21h, não havia mais ninguém nas ruas de Cabul. Chegar e permanecer no país são façanhas realmente tão difíceis quanto parece?

Adriana Carranca - Cabul é a capital afegã, cidade de 4 milhões de habitantes, que concentra também todas as embaixadas, escritórios das Nações Unidas, agências de notícias. Então, essa efervescência toda dá aos visitantes uma certa sensação de segurança. Mas, é claro, é uma sensação falsa porque estamos em um país em guerra. E os cuidados a serem tomados se estendem a toda a população, pois são os afegãos que mais sofrem com esse conflito e com as conseqüências dele, como seqüestros (não apenas pelos taleban, mas motivados pelo dinheiro do resgate, como no Brasil), atentados à bomba etc. Então, à noite, realmente as pessoas se refugiam em casa.

Há muitos guardas nas ruas e eles fazem bloqueios para vistoriar os carros em busca de armas e bombas, então, isso é outro fator limitante. Mas, não é só a violência que mantém os afegãos em casa. É também a pobreza. O transporte público é caótico, a maioria não tem carro, o abastecimento de energia elétrica é quase nulo – quando eu estava em Cabul, só havia luz durante 4 horas a cada dois dias – e não há muito com o que se divertir em um país em guerra.

Cabul tem alguns poucos restaurantes, inacessíveis para a maioria, e lanchonetes mais simples onde os afegãos podem comprar comida para levar para casa. As pessoas não estão nem mesmo com espírito para diversão. Quando há ataques terroristas (houve dois em Cabul, quando eu estava lá), a cidade se recolhe ainda mais cedo, e as pessoas parecem assustadas e tristes. Sobre como chegar lá, as companhias internacionais cancelaram seus vôos para Cabul por causa da guerra. A única que continua tendo vôos regulares é a indiana AirIndia, que sai de Nova Déli. A outra alternativa é utilizar as companhias afegãs, saindo de Dubai.


JE - Do ponto de vista jornalístico, a imagem de um povo sofrido e ignorante em relação às reais motivações de tantos conflitos reflete mesmo a realidade?

Claro que reflete. A realidade é aquela. Quem está sofrendo com os conflitos são o povo afegão. O que não reflete a realidade é dizer que este conflito foi motivado pelo sofrimento deles. Isso, é claro, não é verdade. Mas, não acho que a mídia tenha dado essa impressão. O Estado, por exemplo, dá em suas matérias foco para a política internacional e mesmo a imprensa americana já não compra mais a ideia de uma guerra por democracia ou qualquer coisa assim nem no Iraque. Bem, no Afeganistão nunca se disse que essa era a motivação.

A guerra lá foi iniciada após o 11 de setembro para caçar Osama Bin Laden. O que a imprensa ainda não conseguiu esclarecer, e nem os afegãos entendem, é como as mais de 40 nações desenvolvidas, ricas e com armamento de primeira não conseguiram até agora vencer essa guerra contra os taleban. As forças de coalizão caíram em descrédito e seu aliado governo é acusado de corrupção endêmica. Outro fator é que, por muitos anos, e até agora, a ofensiva só teve foco na luta armada e não na aproximação com o povo afegão e muito menos nos esforços de reconstrução do país como prometido. O Afeganistão continua miserável, como mais de 70% da população analfabeta.

As forças estrangeiras estão lá há oito longos anos. É o tempo da formação básica de uma criança. Por que não fizeram isso? Por que as ruas de Cabul, a capital, continuam esburacadas, porque a população segue sem acesso a água (água!), saneamento básico, energia elétrica? Por que a produção de papoula (matéria-prima para a heroína) explodiu desde a invasão americana? Quanto dinheiro foi gasto e para que? Para nada, por enquanto! Hoje, a situação dos afegãos é muito pior do que nos tempos do taleban, porque alem de toda a miséria que já estava lá, a violência é maior, sem dúvida. É uma guerra. E ainda há muitas questões para serem respondidas sobre ela.


JE - Como é o trabalho da mídia, pelo que pôde perceber? O povo afegão tem toda a informação no que se refere aos fatos, bem como reflexões variadas e imparciais a respeito?

Os jornalistas afegãos têm, sim, acesso a todas as informações, porque hoje em dia há muitos trabalhando para as agências e veículos internacionais, como Reuters, BBC, CNN etc. Com a escalada da violência, as empresas de comunicação procuram manter o menor numero possível de jornalistas estrangeiros no país, o que é bom para os afegãos porque lhes garante emprego. Pelo menos, isso. Agora, o povo afegão, em geral, não tem acesso a nada. Existe muita retórica sobre a defesa disso e daquilo, a violência contra a mulher...

Você quer maior violência contra a mulher do que ter 82% da população feminina analfabeta? Por que isso ocorre? Porque não tem escola – eu visitei uma das maiores escolas só para meninas em Cabul (aliás, como já foram nossas escolas católicas) e vi as alunas estudando em tendas, num pátio aberto. Outro motivo: os maridos são ignorantes, não tiveram também eles acesso a estudo, não têm nem luz em casa, como podemos apontar o dedo para eles? São homens tribais, que não conhecem nada do mundo lá fora e são analfabetos também.

Enquanto os estrangeiros estão lá fazendo uma guerra contra um inimigo que ninguém mais sabe quem ou o que é, os afegãos ainda travam uma batalha diária simplesmente para ter o que comer. A expectativa de vida no país é de 40 anos.


JE - Vê soluções para os conflitos e, consequentemente, toda a precariedade que sofre população?

A reconstrução do país teria sido um caminho, eu acho. Levar ao povo infra-estrutura, escolas, assistência à saúde, qualidade de vida, a possibilidade de troca entre culturas, emprego. Até os taleban se renderiam aos benefícios. Porque, veja, quem são os taleban? São filhos de refugiados do regime soviético retirados de suas famílias e criados isoladamente em escolas religiosas. Essas pobres crianças são, hoje, os temidos líderes dos taleban!

E os outros, abaixo deles, são apenas homens miseráveis, que não conhecem nada do mundo e se juntam aos taleban ou por vingança (há muitos casos de militantes que se uniram às forças de resistência, como os americanos chamam o grupo, porque perderam parentes queridos em bombardeios promovidos pelas forças internacionais), ou por ideologia (quanto menos educação um povo tem, mais espaço terão para ideologias), ou por trabalho (os taleban pagam salário aos combatentes e, por que não se unir a eles se, do outro lado, as forças internacionais não trouxeram benefício algum, melhora alguma para a vida deles?) ou por falta de alternativa.

Os taleban recrutam pessoas nas províncias. Se eles dizem não, são considerados inimigos dos radicais islâmicos; se dizem sim, tornam-se alvo das forças internacionais. Os afegãos estão no meio do fogo cruzado sem ter para onde fugir.