domingo, 4 de outubro de 2009
Os Riscos da Informação no Rio de Janeiro
“Um miliciano de camiseta preta e calça de camuflagem ajoelhou-se no banco do passageiro da frente e mirou o fuzil no meu peito, gritando. Abri a porta à minha direita com tanta força que a maçaneta saiu na minha mão. Pulei na estrada”. O relato acima é de um jornalista. Não no Rio de Janeiro, mas sim na Geórgia, país com grave instabilidade em seu poder".
A frase que você acabou de ler, do repórter Lourival Sant’anna, d’ O Estado de S. Paulo, abriu a penúltima reportagem da série “Os Riscos da Informação” que abordou os perigos do jornalismo na Rússia, região do Cáucaso. A descrição, no entanto, se encaixaria como uma luva se fosse dita por qualquer repórter que chegou a cobrir o violento cotidiano das favelas cariocas e, assim como o colega que viajou ao outro lado do mundo, também teve contato direto com a brutalidade criminal imposta ao trabalho jornalístico.
Por Fernando Galacine
galacine@jeinforma.com
editor do JE em São Paulo
Já era noite quando, não um, mas sete milicianos tocaram a campainha de uma pequena casa na favela do Batan, no dia 14 de maio do ano passado. O amontoado de cômodos encravado no meio da comunidade localizada na zona Oeste do Rio de Janeiro era o QG do jornal carioca O Dia para produção de uma reportagem sobre o poder das milícias naquela favela. Na casa, uma repórter, um fotógrafo e o motorista reuniam-se para cruzarem informações que haviam colhido durante o dia, especialmente entrevistas com moradores e fotos da ação das milícias na favela. Milícia é o nome dado a grupos geralmente formados por policiais, a maioria na ativa. Esses homens ‘defendem’ a população em dois turnos: um pago pelo governo, outro pago [à força] pela comunidade na qual eles atuam. Em suma: policiais corruptos que viram no crescente avanço do tráfico de drogas [e por consequência dos traficantes] um ótimo mercado para posarem de protetores da população: policiais com super poderes, dados por eles mesmos.
Fazendo questão de mostrarem quem de fato eram, prontos para darem voz de prisão, os sete milicianos esperavam a repórter abrir a porta.
Após descobrirem que uma equipe de jornalistas estava na favela, os milicianos não demoraram em armar uma emboscada. No final da tarde daquele quatorze de maio, os criminosos sequestraram o motorista e o fotografo que iam a uma pequena festa organizada pela comunidade. Juntamente com um morador que servia à equipe como guia da região, os dois contratados do jornal foram jogados dentro de um Polo vermelho, com identificação bem conhecida pela comunidade: ‘o carro do patrulhamento’.
Os milicianos seguiram viagem até a pequena casa aonde a repórter do jornal aguardava os colegas. Tocaram a campainha. Esperaram a jornalista abrir a porta. Fortemente armados, entram aos gritos e chutes. Começava a barbárie. Durante sete horas a equipe de O Dia foi torturada das mais diversas formas possíveis, incluindo roleta russa, seguidas de insultos e ameaças.
Após serem levados para outro local e passar por eletrificações e sufocamentos, o grupo teve seus e-mails à redação vasculhados pelos milicianos. Neles, inúmeras informações e fotos que claramente identificavam todos da quadrilha. A revolta dos milicianos aumentou. Mais tortura. Com a chegada do ‘coronel’ do bando, repórter, fotografo e motorista foram julgados. A sentença foi a salvação da equipe: a libertação, às quatro da manhã, numa das avenidas mais movimentadas da capital fluminense: a Avenida Brasil.
O episódio com a equipe do jornal O Dia, que não divulgou o nome dos seus contratados, gerou protestos a favor dos jornalistas na imprensa brasileira e internacional. Mas também gerou críticas à atitude dos repórteres e do jornal.
Desde que o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, foi assassinado em junho de 2002 durante a produção de uma reportagem sobre os bailes funks envolvendo menores de idade nas favelas cariocas, a tensão dos repórteres que são escalados para cobrir essa área da cidade aumentou. “A morte do Tim foi um divisor de águas para os repórteres. Isso significou que o pouco respeito que os jornalistas tinham dentro de uma favela tinha terminado. Num primeiro momento houve uma reação contrária e começamos a discutir como seria feita a cobertura daquele instante em diante. Até hoje é um trauma para os repórteres” diz ao JE Informa a editora do caderno Rio do jornal O Globo, Angelina Nunes, que também é presidente da Associação de Jornalismo Investigativo, a ABRAJI e ganhou um prêmio Esso de Jornalismo pela série de reportagens “Os Brasileiros que ainda vivem na ditadura” um panorama da vida de milhares de brasileiros que por medo ou falta de alternativas acabam submetidos a ordens humilhantes de bandidos nas favelas cariocas.
Angelina Nunes [a primeira da esquerda para a direita] e equipe do jornal O Globo. Entrevistas com moradores para tarçar o cotidiano na ditadura das favelas foram feitas fora das comunidades.
O conflito que casos de violência a jornalistas criou no Rio de Janeiro é enorme. Por um lado, os repórteres que preferem não arriscar a vida por uma produção na favela. De outro, repórteres e muitas redações que acham o furo da notícia e uma audiência consolidada um compensador bem atrativo para enviarem seus jornalistas a áreas reconhecidamente reprimidas pela criminalidade. É onde justamente o debate tem seu clímax. Qual é a atitude que deve ser defendida?
O JE Informa entrou em contato com ao menos quatro veículos de comunicação, que nos últimos meses, exibiram reportagens produzidas dentro das favelas cariocas, com proximidade muito forte a assuntos ligados ao tráfico de drogas. A TV Record, a TV Globo, Bandeirantes e o SBT não responderam aos nossos contatos. O nosso foco em emissoras de televisão teve seus motivos. No que cabe aos canais abertos, o furo jornalístico na concorrência leva equipes inteiras a verdadeiras odisséias pelos morros do Rio de Janeiro.
Recentemente, o SBT protagonizou um dos momentos que podem traduzir bem esse tipo de busca pela informação na cidade. Em plena Linha Vermelha, importante via de tráfego [e de tráfico] do Rio de Janeiro, a repórter Monica Puga ficou a centímetros de balas de fuzis disparadas por traficantes em confronto direto com policiais. A reportagem ganhou destaque no principal telejornal de emissora, um dos mais importantes do país, o SBT Brasil. Conteúdo exclusivo. Prêmio que equipes jornalisticas de todos os meios de comunicação almejam exibir em suas produções quando o assunto é a violência na capital fluminense.
[Veja vídeo da matéria]
A busca pelo furo não é claramente defendida. Órgãos criados para a manutenção da imprensa observam criticamente a postura dos veículos de comunicação quanto à cobertura da violência nas favelas. O Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro já divulgou diversas vezes suas solicitações para a criação de comissões de segurança dentro das redações, mas enfrenta dificuldades: o ato é taxado como intromissão por boa parte das empresas jornalísticas.
Capas de jornal, escaladas dos telejornais da noite, manchetes dos portais de notícias. Diariamente [ou quase isso] as informações sobre a criminalidade no Rio de Janeiro surpreendem todo o país. Operações policiais, confrontos entre facções criminosas, balas e moradores perdidos em meio à barbárie. Se você não é um morador da cidade [como esse repórter também não é] provavelmente, ora ou outra, já associou boa parte do Rio de Janeiro ao caos público e à opressão da imprensa. Devemos pensar assim?
Mônica Puga, do SBT, entrevistando traficantes. Convidados que você não veria no sofá da Hebe.
Quem assistia tranquilamente ao filme que passava naquele sábado à noite no SuperCine certamente ficou atordoado com a entrada repentina do Plantão da Globo juntamente com sua assustadora trilha sonora. A interrupção dada em plena madrugada pelo jornalista César Trali, direto da redação em São Paulo, informava que um dos repórteres da emissora, Guilherme Portanova, havia sido sequestrado enquanto tomava café numa padaria próximo à sede paulistana da emissora pouco antes de gravar uma reportagem. Portanova e o auxiliar técnico da equipe, Alexandre Calado, foram abordados por integrantes supostamente ligados ao grupo criminoso PCC, Primeiro Comando da Capital, e dali foram levados para uma garagem, onde ficaram o tempo todo dentro de um carro.
No mesmo dia da abordagem o desdobramento mais importante do caso. O auxiliar técnico Alexandre Calado havia sido libertado e trazia consigo um vídeo dado pelos criminosos, momentos antes, com uma ordem expressa: exibi-lo o quanto antes pela TV, sob a pena de ter seu colega de equipe assassinado pelos sequestradores.
Dias antes, um DVD contendo as mesmas filmagens que criticavam o sistema penitenciário paulista também fora enviado para o SBT, acompanhado de uma carta anônima. Na ocasião, a emissora decidiu encaminhar o DVD ao Ministério Público. Já a TV Globo, que recebeu o material após o sequestro de sua equipe, decidiu, após consultas a órgãos internacionais de impressa que lidam com questões de ameaças terroristas, veicular o vídeo. Na noite de domingo, após outra exibição parcial das filmagens no Fantástico, Guilherme Portanova foi libertado.
Entre as dez cidades mais violentas do país, divulgadas num estudo feito em 2005 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, o Rio de Janeiro não figura. Sequer na lista restrita às capitais brasileiras o Rio aparece como a campeã na criminalidade. Metrópoles de grande porte e bem próximas à capital fluminense, como Belo Horizonte, têm índice de homicídios cerca de 1 ponto por cem mil maior nesse estudo. Já em outra pesquisa, considerando o ano de 2006, feita pela Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana, a Ritla, aponta que entre os municípios mais violentos do país, o Rio de Janeiro está praticamente empatado com Curitiba, cidade que geralmente não tem seus casos de violência repercutidos nacionalmente.
Garota em favela carioca, juntamente com grafite que evidencia as regras do local. Cidade é violenta, mas não difere dos índices brasileiros. / Foto: O Globo
A capital paranaense aparece apenas uma posição atrás da colega do sudeste quanto à média de homicídios entre a população. São Paulo, maior cidade do país, praticamente empata com o Rio de Janeiro na pesquisa do Ipea, mas distancia-se no estudo do Ritla, ficando com taxas bem menores, mas ainda assim consideradas altas. Em suma: apesar de ser a mais focada, a violência no Rio não chega a superar absolutamente as taxas de qualquer outra grande metrópole do país.
Para Angelina Nunes, a explicação desse tipo de abordagem no Rio se destacar das outras regiões igualmente violentas se dá pela configuração da cidade. “Pela topografia do Rio de Janeiro, as favelas estão muito próximas, na maioria dos bairros. Nas outras cidades, a violência está na periferia, longe dos grandes centros” avalia Angelina, que completa “Acho que é natural que a gente coloque o que acontece na cidade nas páginas, discuta as soluções e cobre das autoridades um posicionamento. Em BH ou SP existem organizações criminosas muito fortes, o PCC é um exemplo disso”.
Repórteres usando capacetes, coletes à prova de balas, escondendo-se atrás de barricadas ou dentro de um veículo chamado de Caveirão. Sem dúvida o trabalho da imprensa no Rio de Janeiro, em diversos pontos da cidade, ganha contornos de jornalismo de guerra. E isso difere a cidade, sim, em relação ao trabalho jornalístico em outras regiões do país. No entanto, isso só mostra o que deve ser feito para que essa violência constrangedora seja corrigida. Não para que seja ignorada ou evitada.
Sobretudo é necessário intensificar o que, de fato, o jornalismo faz de melhor: transformar a realidade, sempre positivamente. Se o foco dos veículos de alcance nacional é a violência no Rio de Janeiro, que isso sirva para objetivamente melhorar esse quesito na cidade e multiplicar o mesmo esforço para outras cidades do Brasil. Só assim a cidade do Rio de Janeiro deixará de ser calamitosa nas manchetes de jornal e, na imprensa, voltar a ser maravilhosa.
[Leia entrevista com Angelina Nunes]
[Acesse a série "Os Brasileiros que ainda vivem na Ditadura"]