Por Malu Fontes*
Todo governo que se preze tem suas políticas culturais, sobretudo em tempos em que a indústria cultural e a economia dos bens simbólicos são braços fortíssimos do mercado. Uma informação divulgada esta semana pelo Governo Federal deu o que falar, embora a polêmica tenha se dado muito mais pelas razões que originaram o anúncio do investimento público do que pelo patrocínio em si. Explica-se: o Governo Federal vai destinar, já neste Carnaval, um milhão de reais para cada Escola de Samba do Rio de Janeiro. A explicação política e técnica é facilmente aceitável. O Carnaval do Rio é um dos maiores espetáculos brasileiros e um chamariz e tanto para o turismo internacional.
Além do chamariz turístico para justificar o desembolso de uma verba pública, não é preciso fazer esforço para imaginar que o espetáculo plástico de cores e brilho que a TV empurra goela abaixo da audiência do país inteiro – como se em Roraima ou na Barra da Tijuca o interesse em assistir àquilo fosse exatamente do mesmo tamanho – custe pouca coisa. E de onde sai o dinheiro? Sem meias palavras, sai basicamente dos bolsos da contravenção carioca, seja ela sinônimo do jogo do bicho, do narcotráfico ou da indústria da violência varejista. Então, em tese, o que o governo quer é dar dinheiro às escolas, por reconhecê-las como um braço importante do setor turístico nacional e, com isso, afastar o financiamento da contravenção e a influência do crime na festa, que não é pouca.
MANGUEIRA - Entretanto, uma pergunta não quer calar. Se sempre se soube que a contravenção e o Carnaval carioca mantinham uma relação do tipo unha e cutícula, por que só agora o poder público se incomoda com isso? Uma resposta óbvia é que nunca é tarde para passar a limpo as promiscuidades existentes no país entre o crime e a sociedade, nesse caso entre a cúpula da criminalidade carioca e a principal festa oficial brasileira. Mas a verdade é que a razão que provocou a boa vontade do governo para com o desfile do Sambódromo não foi exatamente esta, ou apenas esta, e sim, mais uma vez, uma imagem de TV registrando essa histórica promiscuidade, exibida em rede nacional. Uma das mais famosas e importantes escolas de samba do Rio, a Mangueira, foi flagrada literalmente entrando, dançando, cantando e tocando entusiasmadíssima na festa de casamento de um dos mais famosos criminosos brasileiros, o já legendário Fernandinho Beira Mar.
Beira Mar casou recentemente e a Mangueira foi a grande atração da festa, animando-a e reverenciando o noivo. Como hoje sempre há uma câmera escondida, um celular registrando tudo ou alguém copiando e divulgando cenas que eram para se manter na privacidade de poucos, o fato é que as imagens do casório do traficante foram parar nas redações das emissoras. Com isso, o que acontece há anos sem constrangimento, ou seja, a amizade entre presidentes de escolas de samba e traficantes e/ou bicheiros, constrangeu a Mangueira. A direção da escola pediu afastamento e o governo entrou na história. Esse desfecho é mais um dado e tanto para a reflexão sobre o poder da televisão. Em outras palavras, é assim: o grave não é o comportamento de fulano ou beltrano, mas o fato de isso, sob a forma de imagens, ir parar na tela da TV. Aí tudo vira inquérito, liberação ou corte de verbas, demissões, afastamentos, a depender da natureza do caso. Tudo, claro, para, um par de semanas depois, ninguém mais tocar no assunto ou se lembrar dele.
AGENTE LARANJA - É mais do que justificável que o Governo Federal financie o Carnaval do Rio. Outra história, no entanto, é acreditar que, com isso, a contravenção va se afastar das escolas de samba, diminuir sua influência sobre a festa ou deixar de financiá-la. E, para continuar na seara da sensibilidade governamental, é uma pena que meras imagens da Mangueira entrando na vida privada de Fernandinho Beira Mar comovam tanto o poder público a ponto de levá-lo, em regime de emergência, a liberar alguns milhões para as escolas de samba cariocas, enquanto outras cenas mais graves passem despercebidas das autoridades e de parte do público, mesmo exibidas em detalhes na TV.
No último domingo, por exemplo, o Fantástico divulgou cenas e informações que justificariam ações e intervenções imediatas do governo brasileiro na Amazônia. Em uma região conhecida como Terra do Meio, para expulsar os pequenos agricultores de seus nacos de terra na floresta (gente pobre de-marré-de-si), os grileiros, fazendeiros e madeireiros estão lançando mão de um artifício que fazem os nazistas parecerem mais honestos. Além dos expedientes clássicos para o assassinato, estão usando pesticidas químicos mortais (o agente laranja, usado na Guerra do Vietnã pelos americanos) para borrifar, através de helicópteros, as pessoas e matá-las.
BEIRA MAR NA AMAZÔNIA - Isso está acontecendo na mesma área onde foi assassinada a missionária americana Dorothy Stang. Qual a atitude concreta adotada pelo governo brasileiro? Na reportagem do Fantástico , foram mostradas nada menos que três gerações de pessoas que simplesmente inexistem oficialmente. Ninguém tem registro civil. Nunca freqüentaram uma escola, nunca foram ao médico, nunca viram um anticoncepcional, e em famílias com 10, 12 filhos ainda crianças e adolescentes é comum que três ou quatro já tenham morrido. Quem sabe uma visita de Fernandinho Beira Mar na região, devidamente filmada, claro, distribuindo comida e remédio, não ajudaria o poder público a enxergar aqueles invisíveis? E como perguntar não ofende, como o Fantástico acha, vê e registra esses fatos e o poder público não sabe dessa realidade que mistura medievalismo a guerras químicas pós-modernas?
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. O texto tem autorização da autora para ser reproduzido.
Todo governo que se preze tem suas políticas culturais, sobretudo em tempos em que a indústria cultural e a economia dos bens simbólicos são braços fortíssimos do mercado. Uma informação divulgada esta semana pelo Governo Federal deu o que falar, embora a polêmica tenha se dado muito mais pelas razões que originaram o anúncio do investimento público do que pelo patrocínio em si. Explica-se: o Governo Federal vai destinar, já neste Carnaval, um milhão de reais para cada Escola de Samba do Rio de Janeiro. A explicação política e técnica é facilmente aceitável. O Carnaval do Rio é um dos maiores espetáculos brasileiros e um chamariz e tanto para o turismo internacional.
Além do chamariz turístico para justificar o desembolso de uma verba pública, não é preciso fazer esforço para imaginar que o espetáculo plástico de cores e brilho que a TV empurra goela abaixo da audiência do país inteiro – como se em Roraima ou na Barra da Tijuca o interesse em assistir àquilo fosse exatamente do mesmo tamanho – custe pouca coisa. E de onde sai o dinheiro? Sem meias palavras, sai basicamente dos bolsos da contravenção carioca, seja ela sinônimo do jogo do bicho, do narcotráfico ou da indústria da violência varejista. Então, em tese, o que o governo quer é dar dinheiro às escolas, por reconhecê-las como um braço importante do setor turístico nacional e, com isso, afastar o financiamento da contravenção e a influência do crime na festa, que não é pouca.
MANGUEIRA - Entretanto, uma pergunta não quer calar. Se sempre se soube que a contravenção e o Carnaval carioca mantinham uma relação do tipo unha e cutícula, por que só agora o poder público se incomoda com isso? Uma resposta óbvia é que nunca é tarde para passar a limpo as promiscuidades existentes no país entre o crime e a sociedade, nesse caso entre a cúpula da criminalidade carioca e a principal festa oficial brasileira. Mas a verdade é que a razão que provocou a boa vontade do governo para com o desfile do Sambódromo não foi exatamente esta, ou apenas esta, e sim, mais uma vez, uma imagem de TV registrando essa histórica promiscuidade, exibida em rede nacional. Uma das mais famosas e importantes escolas de samba do Rio, a Mangueira, foi flagrada literalmente entrando, dançando, cantando e tocando entusiasmadíssima na festa de casamento de um dos mais famosos criminosos brasileiros, o já legendário Fernandinho Beira Mar.
Beira Mar casou recentemente e a Mangueira foi a grande atração da festa, animando-a e reverenciando o noivo. Como hoje sempre há uma câmera escondida, um celular registrando tudo ou alguém copiando e divulgando cenas que eram para se manter na privacidade de poucos, o fato é que as imagens do casório do traficante foram parar nas redações das emissoras. Com isso, o que acontece há anos sem constrangimento, ou seja, a amizade entre presidentes de escolas de samba e traficantes e/ou bicheiros, constrangeu a Mangueira. A direção da escola pediu afastamento e o governo entrou na história. Esse desfecho é mais um dado e tanto para a reflexão sobre o poder da televisão. Em outras palavras, é assim: o grave não é o comportamento de fulano ou beltrano, mas o fato de isso, sob a forma de imagens, ir parar na tela da TV. Aí tudo vira inquérito, liberação ou corte de verbas, demissões, afastamentos, a depender da natureza do caso. Tudo, claro, para, um par de semanas depois, ninguém mais tocar no assunto ou se lembrar dele.
AGENTE LARANJA - É mais do que justificável que o Governo Federal financie o Carnaval do Rio. Outra história, no entanto, é acreditar que, com isso, a contravenção va se afastar das escolas de samba, diminuir sua influência sobre a festa ou deixar de financiá-la. E, para continuar na seara da sensibilidade governamental, é uma pena que meras imagens da Mangueira entrando na vida privada de Fernandinho Beira Mar comovam tanto o poder público a ponto de levá-lo, em regime de emergência, a liberar alguns milhões para as escolas de samba cariocas, enquanto outras cenas mais graves passem despercebidas das autoridades e de parte do público, mesmo exibidas em detalhes na TV.
No último domingo, por exemplo, o Fantástico divulgou cenas e informações que justificariam ações e intervenções imediatas do governo brasileiro na Amazônia. Em uma região conhecida como Terra do Meio, para expulsar os pequenos agricultores de seus nacos de terra na floresta (gente pobre de-marré-de-si), os grileiros, fazendeiros e madeireiros estão lançando mão de um artifício que fazem os nazistas parecerem mais honestos. Além dos expedientes clássicos para o assassinato, estão usando pesticidas químicos mortais (o agente laranja, usado na Guerra do Vietnã pelos americanos) para borrifar, através de helicópteros, as pessoas e matá-las.
BEIRA MAR NA AMAZÔNIA - Isso está acontecendo na mesma área onde foi assassinada a missionária americana Dorothy Stang. Qual a atitude concreta adotada pelo governo brasileiro? Na reportagem do Fantástico , foram mostradas nada menos que três gerações de pessoas que simplesmente inexistem oficialmente. Ninguém tem registro civil. Nunca freqüentaram uma escola, nunca foram ao médico, nunca viram um anticoncepcional, e em famílias com 10, 12 filhos ainda crianças e adolescentes é comum que três ou quatro já tenham morrido. Quem sabe uma visita de Fernandinho Beira Mar na região, devidamente filmada, claro, distribuindo comida e remédio, não ajudaria o poder público a enxergar aqueles invisíveis? E como perguntar não ofende, como o Fantástico acha, vê e registra esses fatos e o poder público não sabe dessa realidade que mistura medievalismo a guerras químicas pós-modernas?
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. O texto tem autorização da autora para ser reproduzido.