
Ele ganhou um prêmio na Alamanha por tratar da vida dos ciclistas em meio aos carros da maior cidade do país. Thiago Benicchio, criador do blog Apocalipse motorizado, eleito o melhor blog em língua portuguesa de 2006, pelo The Bob's concedeu uma entrevista ao JE Informa. Na terceira reportagem da série sobre Poluição e meio ambiente, você vai ver o que esse paulistano, que decidiu vender o carro e passar a andar com sua bicicleta pela metrópole, tem a nos contar.
JE - O seu blog trata muito da vida que o ciclista, e também o pedestre, enfrentam numa cidade que os motoristas ditam o trânsito. São Paulo precisa melhorar onde nesse sentido?
Todos em São Paulo, inclusive os motoristas, sofrem com a predominância, a supervalorização e o uso excessivo de automóveis. Se os ciclistas e pedestres são constantemente ameaçados e desrespeitados pelos motoristas (ainda que estes não sejam movidos por mau-caratismo), quem utiliza apenas o automóvel para se locomover também é vítima, pois passa horas dentro do carro, gasta fortunas para manter o veículo, perde qualidade de vida, tempo e saúde com a dependência.São Paulo é uma das cidades brasileiras em estado mais avançado de degradação por causa da cultura do automóvel, tanto em qualidade quanto em quantidade. A cidade precisa, em primeiro lugar, perceber, assumir e propagar a quatro ventos que o uso excessivo do automóvel é um grave problema urbano. Assumir o automóvel como problema é o primeiro passo e isso deve acontecer em todas as instâncias: sociedade civil, no poder público, comércio, indústria, partidos políticos, no cidadão comum. A partir daí é natural que surjam medidas de estímulo ao respeito, à convivência e à valorização das outras formas de transporte. Calçada decente é algo raro, basta comparar a qualidade das pistas para carros e dos espaços
para pedestres. Investimento massivo, sério e constante no transporte público coletivo parece óbvio, mas não é o que acontece ainda. Outro fator importante é propor publicamente o resgate de espaços e recursos "perdidos" para os automóveis. Uma das grandes dificuldades para a construção de ciclovias, por exemplo, é ter que retirar o espaço público ocupado pelos carros (propriedades privadas) para o estacionamento. Em São Paulo, para pegar um caso bem particular, poderíamos ter uma bela ciclovia na Rua Estada Unidos e um belo calçadão na Rua Pamplona (que tem um espaço insuficiente para a quantidade de pessoas que circula por ali e estacionamento liberado nos dois lados da via). Mas imagina proibir o estacionamento (mesmo que seja em zona azul) nestas duas (apenas duas!) ruas? É preciso comprar a briga com jornais e revistas, com "formadores de opinião", com interesses econômicos poderosos e até com interesses "legítimos" de algumas pessoas que dependem do carro, até porque a cidade oferece poucas condições para que esta pessoa deixe o carro em casa. São Paulo precisa criar e resgatar estruturas para que toda a população
possa se locomover com qualidade, e não apenas aqueles que possuem carro. Precisa começar a punir e educar os motoristas que cometem infrações ligadas ao respeito (estacionamento em calçadas, não dar seta nas conversões, ameaçar ciclistas e não dar preferência aos pedestres em faixas). No caso dos ciclistas, é preciso incluir a bicicleta no rol de veículos legítimos: educar agentes de trânsito, motoristas e até ciclistas, que simplesmente desconhecem os direitos e deveres de circulação da bicicleta. Esta ação deve ser adotada com firmeza: não basta colocar faixas em duas ou três ruas dizendo "respeite a faixa de pedestres", é preciso ir além e disseminar a noção de que a rua é de todos, que os espaços públicos da cidade não foram feitos apenas para a circulação de automóveis.
JE - Alguma solução pode ser tomada em curto prazo?
Em curto prazo, é preciso romper com os privilégios dedicados ao automóvel e quebrar os valores vendidos pela propaganda como supremos e inquestionáveis. Isso é um processo lento, mas é preciso vontade de perceber e entender os problemas sem as amarras da cultura do automóvel, pensando antes na locomoção das pessoas e no direito que elas têm de usar o espaço urbano e só depois no deslocamento e estacionamento de automóveis. Essa é uma postura significativa que deve ser assumida aos poucos pelo conjunto da sociedade e da classe política.
Infelizmente vemos que as soluções em curto prazo se baseiam apenas no paradigma de "precisamos melhorar o trânsito" e acabam por estimular o uso do automóvel particular, e não melhorar a locomoção das pessoas. Vide os fechamento dos calçadões do centro ("abertos" para os carros), a abertura de corredores de ônibus para automóveis particulares aos finais de semana e feriados, o aumento acima da inflação nas tarifas do transporte coletivo... Perto disso, as poucas ações pró-bicicleta e pró-pedestre soam insignificantes.
Medidas como ampliação do rodízio e pedágio urbano são paliativos se não vierem acompanhadas de um reforço massivo no "outro lado" (o dos "sem-carro"), portanto acredito que a solução para o problema não é apenas técnica, mas sim uma decisão política de para quem se deve governar (se para a minoria que tem carro ou para a maioria que utiliza outros meios de locomoção).
JE - A bicicleta faz bem a saúde, além disso, e mais importante, ajuda reduzir drasticamente a poluição. Em sua opinião por que não há uma aderência da população? Falta de incentivo ou preguiça de abandonar o carro?
Falta de incentivo e de condições, em primeira instância. A acomodação das pessoas no "conforto" do automóvel poderia ser
significativamente reduzida se houvesse uma política pública de frear o uso excessivo do automóvel. Desta responsabilidade os sucessivos governos automobilistas paulistanos não podem fugir (com raras e espasmódicas exceções), ainda que tenham sido respaldados pela sociedade.
Aos finais de semana, milhares de pessoas passeiam de bicicleta pela cidade. Se este cidadão tivesse o mínimo de condições, estímulo e respeito para fazer algum percurso durante a semana, certamente ele iria optar por usar a bicicleta no lugar do carro e a razão para isso é simples: em boa parte dos casos, é muito mais gostoso e agradável andar de bicicleta do que dentro de um carro. E não é preciso muito para isso, com certeza o custo de estimular o uso da bicicleta seria muito menor do que a quantidade de recursos destinados à manutenção do modelo automobilista.
JE - Que cidade, fora ou dentro do Brasil, seria um bom exemplo para São Paulo?
Ouço falar de Bogotá e me parece que lá essa postura de assumir o carro como problema e decidir para quem se governa foi assumida a favor das pessoas (e não dos carros).
JE - Você acha que os governos, de uma forma geral, se interessam em resolver este assunto?
À medida que vão ficando mais claros e explícitos os danos causados pelo uso excessivo do automóvel, os governos começam a perceber que algo deve ser feito. Hoje temos um Ministério das Cidades e em diversas cidades do país órgãos recentes responsáveis por ampliar a noção de que as ruas servem para a locomoção das pessoas, e não apenas dos carros.
Infelizmente as ações ainda são pífias e as medidas não superam muito o caráter paliativo de "melhorar o trânsito", até porque tanto os governos quanto a imprensa dependem e muito do dinheiro vindo da indústria automobilística (publicidade e outros acordos aí incluídos). A indústria automobilística gera recursos, movimenta a economia, mas a questão é o custo econômico, humano e ambiental disso tudo e qual o papel do Brasil na geopolítica corporativa das multinacionais do carro (vide a compra da cearense Troller pela Ford). Não precisamos trilhar todo o caminho que
os ditos "países desenvolvidos" trilharam há mais de um século: não precisamos queimar nossas florestas (como fizeram os desenvolvidos após a revolução industrial) para perceber que não é bom queimar florestas; não precisamos entupir nossas ruas de carros para perceber o transtorno que eles causam. Infelizmente essa visão de um desenvolvimento "linear", baseado no avanço da técnica capitalista e na tentativa de alcançar os desenvolvidos submetendo-se a eles, acaba por impedir que soluções alternativas e eficientes sejam colocadas em prática.