
Do JE em Salvador
É difícil precisar uma causa, mas o fato é que o nordestino mantém uma relação íntima com a fé. Não importa muito em que ou em quem ela é depositada o importante é acreditar em algo espiritual, místico, que extrapole as fronteiras do mundo material, repleto de problemas insolucionáveis aos olhos do homem. Do Maranhão, com seu tambor de Mina, segmentação da religião africana, à Bahia, imersa em seu candomblé vivo, passando pelo Ceará devoto de Padre Cícero, a religiosidade se faz presente de maneira latente e se manifesta na forma de oferendas, sacrifícios, promessas, festas, atos de fé, muitas vezes desmedidos, que comprovam a força da espiritualidade nordestina.
O censo de 2000 feito pelo IBGE tentou mensurar o tamanho da fé do nordestino. Confirmou o que todos já sabiam, mas revelou, no entanto, um fato curioso. Os dados mostraram que por aqui existe muita gente sem religião. A maioria destas pessoas vive nas zonas urbanas, distante do caótico cenário de abandono e miséria do sertão. A porcentagem não chega a ser expressiva, 7% da população, mas o número não deixa de ser surpreendente, justamente, por se tratar de uma parte do Brasil, aparentemente, muito ligada às tradições de cunho religioso. Pernambuco e Bahia lideram o ranking nacional dos ateus e agnósticos. Onze por cento dos pernambucanos e 10,3% dos baianos declararam não ter crença em religiões ou divindades. Em um país no qual o catolicismo perde força, o nordeste se apresenta como a região um tanto avessa à quebra desta hegemonia. Segundo o IBGE, aproximadamente 80% dos nordestinos são católicos. Mas outras doutrinas vêm, aos poucos, crescendo e angariando seguidores no nordeste.
Este censo mostrou que apesar de a região concentrar, proporcionalmente, a maior parcela de católicos do Brasil, ela também possui grandes nichos de adeptos das religiões africanas e é onde o segmento evangélico encontra um grande espaço para crescimento.
Vale lembrar, entretanto, que a igreja católica que mantém sua força quase inabalada no nordeste não é a mesma, decadente, do resto do Brasil. A riqueza cultural da região impediu que os dogmas e doutrinas da europeizada Igreja Católica Apostólica Romana fossem mantidos intactos. Eles foram submetidos à influência da cultura regional. Salvador representa muito bem esta influência e é, hoje, um palco da diversidade religiosa e possui um modo peculiar de lidar com a fé e a religião. Aqui, na capital baiana, existem 365 igrejas católicas, uma para cada dia do ano. As missas em cada uma delas são quase sempre concorridas. Além de muitas igrejas, Salvador também possui muitos terreiros de candomblé que estão espalhados por vários bairros da cidade, sobretudo nos mais carentes. Composta eminentemente por negros, a cidade sofreu interferências da cultura afro em seu processo de formação. Em lugar de um possível conflito envolvendo o catolicismo e a religião negra, vemos na cidade uma atmosfera de harmonia.
As discordâncias cederam lugar ao sincretismo. Santos da igreja católica encontram orixás correspondentes no candomblé. Recebem outros nomes e representações simbólicas, mas compartilham a mesma devoção incessante dos fiéis. No cronograma de festas sincréticas de Salvador estão dezenas de manifestações populares como a festa de Yemanjá e de Santa Bárbara, mas a principal é a Lavagem do Senhor do Bonfim, que no candomblé é Oxalá. Esta festa é um dos pontos altos do sincretismo afro-católico em Salvador. A celebração, originalmente católica, acontece todos os anos na segunda quinta-feira do mês de janeiro e termina na Colina Sagrada, igreja do Senhor do Bonfim. Lá, o culto católico une-se aos rituais do candomblé. Centenas de baianas, adeptas da religião africana, oferecem banhos de pipocas, dançam, incorporam orixás e lavam as escadarias da igreja. A lavagem reúne, todos os anos, milhões de pessoas nas ruas da cidade baixa.
É na cidade baixa também onde encontramos outro símbolo da união e do respeito entre as diferentes religiões existentes em Salvador. Localizadas no bairro de Largo de Roma, periferia da capital baiana, as Obras Sociais Irmã Dulce, há 48 anos, oferecem, àqueles que mais precisam, saúde e educação. O projeto foi idealizado e construído por Irmã Dulce, conhecida como o Anjo Bom da Bahia. Evangélicos, espíritas, católicos, não importa a religião, todos por aqui são unânimes no reconhecimento da dedicação da freira católica. Desde os 13 anos Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes escolheu o caminho da vida religiosa e do trabalho social. Hoje, a instituição mantém um complexo de hospitais, centros de saúde e o Centro Educacional Santo Antônio, todos voltados às pessoas carentes de todo o estado. Internada em um dos 373 leitos do Hospital Santo Antônio, Dona Margarida, que é evangélica, se recupera de uma cirurgia realizada no primeiro centro cirúrgico a conquistar, em 2002, o certificado de qualidade ISO 9001 versão 2000. Além da excelente infra-estrutura, o hospital conta com um remédio considerado infalível: a fé. Ao lado de cada paciente, um acompanhante aflito canaliza seu desejo de recuperação de seu ente querido nas rezas, orações, petições dirigidas ao Anjo Bom. Dona Margarida foi uma dos 1000 pacientes operados todos os meses no centro e também usa da sua fé para se recuperar. Ainda debilitada, encontra forças para agradecer o bom serviço do hospital. “Fui muito bem tratada. Atendimento ótimo”, fala. Fixando o olhar na imagem de Irmã Dulce, colocada na cabeceira de cada leito, ela agradece também à freira católica que, segundo ela, “de alguma forma deve ter dado uma ajudinha na recuperação”. Dentro de duas semanas Dona Margarida deve ter alta. Está curada. Livre de uma suspeita de câncer. Assim como ela, outras pessoas lutam pela vida e, por isso, nos corredores o corre-corre de médicos e pacientes é intenso, o compromisso maior é com a vida, e cada segundo pode ser determinante. O engajamento de cada funcionário acaba sendo fundamental e eles não medem esforços para atender a todos. Lição deixada pela Irmã com status de santa.
Pelo trabalho social desenvolvido e sua vida íntegra, Irmã Dulce está prestes a se tornar uma beata. Os seguidores esperam ansiosos por isto e já pensam mais adiante. Querem ver a dedicada irmã como Santa Dulce. O processo é lento e minucioso. O vaticano exige testemunhos de milagres possivelmente realizados pelo aspirante à santo. O processo de beatificação foi iniciado há mais de 7 anos. Para o postulante ser reconhecido como beato, é necessária confirmação de, ao menos, um milagre. O Positio, documento do processo canônico que contém um relato biográfico e um resumo dos testemunhos do processo que atesta as ações virtuosas, foi entregue ao Vaticano em 2003 e lá está contido várias histórias de possíveis milagres atribuídos à Irmã. Pelo menos um já foi reconhecido juridicamente. A participação popular neste processo tem ajudado bastante.
O Tribunal Eclesiástico Diocesano de Salvador possui um documento de, aproximadamente, cinco mil páginas de depoimentos e provas que confirmariam a santidade de Irmã Dulce. No seu Memorial estão catalogadas quase 3 mil graças, atribuídas por fiéis, ao poder do Anjo Bom da Bahia. Uma destas histórias é a de E.F.S, moradora de Salvador, que no ano 2000 diz ter sido curada de um câncer maligno. A cura, segundo ela, foi obra de Irmã Dulce. Veja a seguir um trecho da correspondência que ela enviou as Obras da Irmã.
“Vivi momentos dramáticos no final de 2000, quando fui diagnosticada, no Hospital de Irmã Dulce, com câncer maligno no colo uterino. Fiz um raio-x, e até a minha bexiga tinha sido afetada, eu sentia tantas dores nas costas, era o osso da minha bacia que também já tinha sido afetada. Eu estava desesperada, senti vontade de me atirar embaixo do carro, naquele momento eu estava sozinha, ou seja, eu pensava está só, mais na verdade eu não estava só. Resolvi entrar na capela do Hospital de Irmã Dulce, ajoelhei-me diante da imagem de Jesus Cristo e pedi em prantos: Oh! Grande Pai, preciso tanto de te neste momento eu te suplico, ponho a minha vida em tuas mãos, Oh! Meu pai celestial enviai este anjo do bem para me salvar, rezei bastante e fui até ela e pedi - com muita fé - mesmo. Minha Santa Irmã Dulce me salva mãe me mostra o caminho por onde devo começar, estou me sentindo sem rumo, estou prestes a morrer de uma doença horrível, que está me levando aos poucos. Depositei tanta fé em Irmã Dulce, que depois até de ser desenganada pela médica, eu não perdi a grande perspectiva de vida, eu dizia não é nada disso, Irmã Dulce está bem aqui do meu lado e vai me ajudar. Graças a Deus primeiramente, em todos os meus momentos difíceis Irmã Dulce nunca me abandonou. Hoje após três anos e meio de luta, estou com saúde, levo uma vida normal. Canto, danço, brinco, jogo bola, me divirto sem problema nenhum. Então me sinto na obrigação de contar esse milagre para todos, sou hoje devota da Santa Irmã Dulce. Obrigada minha santa, obrigada mesmo, sei que sem vós jamais eu conseguiria esta glória. Amém!”.
Ao lado de Irmã Dulce, Padre Cícero também aguarda sua beatificação. O seu processo ainda aguarda um posicionamento da Igreja Católica. O vaticano tarda a conceder os títulos de beato ou santo, mas eles já foram dados há muito tempo por aqueles que fazem a igreja católica:o povo, que utiliza a fé como único critério para determinar a santidade. A cidade de Juazeiro do Norte é a Meca dos devotos do Padre, carinhosamente chamado de Padim Ciço.
Irmã Dulce na Bahia, Padre Cícero no Ceará, outros tantos símbolos de fé por todo o nordeste. Uma grande região se rende ao poder de uma simples palavra: Fé, uma sílaba, duas letras, uma infinidade de mistérios, plenamente compreensíveis para quem a tem.
Para fazer doações às Obras Sociais Irmã Dulce basta ligar, de domingo a domingo, das 7 às 12h e das 13 às 19h, para (71) 3310-1105 ou enviar e-mail para doacao@irmadulce.org.br