Por Filipe Costa, do JE em Salvador
Manhã chuvosa em Salvador. Após alguns minutos andando e pedindo informações para gente apressada e estranha, pouco disposta a colaborar, finalmente encontro o que procuro: o bairro do Candeal. O cenário com o qual me deparo é um tanto desolador. Casas pobres, inacabadas, pessoas revirando o lixo em busca da sobrevivência, contrastam com os prédios e lojas de luxo que rodeiam o local. O Candeal tem como vizinho um bairro nobre da cidade, o Cidade Jardim. Em um pequeno espaço, encontro, perfeitamente refletida, a chocante desigualdade social existente no Brasil. Se de um lado vi condomínios com quadras poliesportivas, do outro, é possível ver Gabriel e Anderson, dois garotos de 12 anos, jogando futebol na rua. Um carro buzina e os meninos rapidamente saem da frente. Isso já faz parte do jogo. Desconfiados, eles me observam, percebem que eu não sou dali. Decido entrevistá-los. Acham esquisito alguém os abordar para ouvir o que eles têm a dizer. É bem verdade, que não é muito, mas o suficiente para sentirmos o desejo de ambos de dar um rumo diferente à vida. “Eu tomo banca pela manhã e à tarde eu estudo, é importante”, diz Anderson. O amigo Gabriel, mais tímido, evita participar do diálogo e logo orienta o companheiro de “baba” a dispensar o intruso e continuar a brincadeira. Percebo a situação e me despeço. De longe, avisto os dois: continuam brincando, felizes, com a bola velha, descalços (pois os chinelos substituem o travessão), debaixo de chuva, em meio a poças de água, em meio a sonhos que dificilmente serão concretizados.
No Candeal todos parecem levar a vida tranqüilamente, apesar das adversidades. O silêncio do bairro é quebrado apenas pelo som que ecoa de um prédio destoante das demais construções, em suas paredes desenhos que fazem alusão à cultura africana. A placa esclarece que se trata do Centro de Educação Profissional Pracatum. Lá 386 jovens aprendem música, principalmente, a batida afro já conhecida dos baianos. A escola de música Pracatum surgiu em 1994 com o objetivo de tirar crianças como Gabriel e Anderson das ruas do bairro. Após firmar um convênio com o governo do estado em 2005 o projeto tomou maiores proporções e hoje conta com uma grande infra-estrutura: além das salas de aula, existem salas para práticas de grupo, sala de instrumento, cantina, biblioteca e estúdio de gravação. Os alunos aprendem não só a tocar instrumentos, adquirem conhecimento teórico a respeito da história da música, aprendem a ler partituras, canto oral e estudam a relação da música com a sociedade e as diferentes culturas. A abrangência e a qualidade dos cursos atraem muita gente. Os processos seletivos, que acontecem anualmente, costumam ser bastante concorridos.
Em 2006 cerca de 800 pessoas foram inscritas, mas apenas 300 vagas foram disponibilizadas. Os cursos de violão e percussão são os mais procurados, mas além destes, a escola oferece aulas de guitarra, teclado, violino, violoncelo, flauta, entre muitos outros. Após 3 anos de curso, o aluno sai com o diploma de técnico em música com ênfase no instrumento que escolheu. Em 2008 a escola terá sua primeira turma formada.
Entre esses estudantes estão Magno Santana e Leilane Araújo. A música sempre deu ritmo à vida destes jovens. Por ironia, foi no emprego que arranjou para custear seus estudos de música em uma escola particular, que Magno conheceu o Pracatum e pôde, então, aprender música de graça. “Soube da existência do pracatum na loja de calçados em que trabalhava, um cara da loja me contou. Trabalhava lá para pagar um curso de música que freqüentava”, diz. Priscila teve a rara oportunidade de participar de uma oficina de música ainda no ensino médio, no Colégio Estadual Manoel Novaes. Há dois anos no Pracatum, conta, com brilho nos olhos, as suas aventuras em Brasília, onde já fez duas apresentações.“Eu quis dar o melhor de mim, porque a gente estava mostrando o resultado de todo o investimento. Fiquei nervosa porque era a primeira vez que eu estava viajando para mostrar meu trabalho, mas muito feliz por ter sido escolhida para está lá. Foi emocionante. Fiquei muito orgulhosa”. Hoje, Priscila diz ser outra pessoa e alimenta o desejo de um dia transmitir todo o conhecimento adquirido na escola. “Eu mudei muito desde que entrei aqui. Amadureci, conheço mais de música, sei o que eu posso fazer que eu posso ser. Aprendi a lutar pelos meus objetivos e persegui-los. Penso em fazer faculdade de música e queria trabalhar com escolas também como professora de música”, diz. Quem também viu no Pracatum a chance de mudar a vida foi Dona Raimunda. A vendedora monta bem cedinho a sua banca de lanches em frente ao Centro Pracatum. É com o dinheiro da venda dos salgados que ela recheia o orçamento doméstico e sustenta seus 3 filhos, um deles é Elaine que há dois anos participa do projeto. Orgulhosa, a mãe conta que “agora ela tem perspectiva, pretende fazer faculdade, sempre teve esse objetivo, mas o pracatum reafirmou ainda mais esse desejo. Cresceu bastante como pessoa e profissional. Ela sempre gostou de música e essa foi a oportunidade para ela aprender gratuitamente. Espero que ela se torne uma grande musicista”.
Diante de histórias como estas, facilmente encontradas no Pracatum, é possível ver que a música toca a alma, o espírito, aguça os sentidos, desperta emoções e, também, transforma vidas!