Por Malu Fontes*
Uma das entrevistas mais esperadas e mais decepcionantes da televisão aberta brasileira foi ao ar há duas semanas no Roda Viva (programa retransmitido na Bahia pela TVE – Irdeb). Sentado na cadeira mais importante dos entrevistados do telejornalismo nacional estava ninguém menos que Mano Brown, o líder emblemático e raivoso do mais importante grupo de rap do país, o Racionais MCs, composto ainda por Ice Blue, Edy Rock e KL Jay. O grupo é incensado por 11 entre cada 10 estrelas da música e da cultura brasileira, gente considerada como antena da raça, como Caetano Veloso e afins.
Agressivo diante de qualquer acesso da imprensa, avesso a aparições públicas, inimigo declarado dos meios de comunicação de massa, da polícia e da finada classe média, como ele a denomina, até a antológica – que de antológica nada teve - entrevista no Roda Viva, Mano Brown era mais que um homem, mais que um líder de uma banda. Parecia representar a condição de porta-voz da miséria urbana supostamente consciente do seu lugar de oprimida e confinada no inferno ou nas versões atualizadas e contemporâneas dos navios negreiros que não levam a lugar nenhum, ou seja, as favelas e periferias das grandes metrópoles.
O CLICHÊ DO AMOR - É verdade que parte do time de entrevistados convocados pela TV Cultura de São Paulo (geradora do Roda Viva) para espremer Mano Brown não ajudou muito. Quem teria sido o sujeito incauto que teve a infeliz idéia de convidar o vestuto repórter policial com ares, modos e bigodes ruivos típicos do século passado e que atende pelo nome de Renato Lombardi para entrevistar um rapper pouco simpático? E o que dizer do escritor e poeta José Nêumanne, que, diante do entrevistado, parecia entender tanto do assunto quanto Ana Maria Braga da lei de Biossegurança? Até mesmo a psicanalista Maria Rita Kehl, comumente genial em suas intervenções faladas ou escritas onde quer que esteja, ficou limitada apenas a uma aluna mediana que fez o dever de casa ao estudar direitinho todas as letras de todos os discos dos Racionais. A limitação do entrevistado diante das perguntas da psicanalista impossibilitava qualquer resposta para além do superficial. Quando Kehl tentou questionar o conteúdo discurso de Brown, ele foi lacônico: "não tenho discurso".
O clichê da noite ficou com Paulo Lima, o editor das revistas moderninhas Trip e TPM e também conhecido como o melhor amigo de Luciano Huck. Pois bem, diante do rapper que se recusa a chamar traficante de traficante e exige que esse tipo de profissional, digamos, seja chamado de comerciante, Lima sai com essa pérola antológica que deve entrar para os anais do programa: "O que é o amor para você?". Tá bom ou quer mais? A finada classe média, várias vezes assim classificada por Brown, representada pelos ilustres entrevistados, não deu um piu quando ele disse que traficante é um mero comerciante, afinal o produto que ele vende em nada difere daquele vendido por marcas como a 51 (aquela da Boa Idéia) ou a Ambev (a gigante das cervejarias). Sequer um contra-argumento. Perguntas sobre o PCC que barbariza e sai pela cidade de São Paulo matando Deus e o mundo? Quem disse que houve coragem ou coisa que o valha para questionar o moço? Parecia que traficante é tuto gente bona...
MELHOR CANTANDO – Para quem nutria uma simpatia pela atitude visceral e avessa de Mano Brown à tal sociedade midiática do espetáculo, restou apenas um quê de melancolia, uma certa comprovação de que intimidade demais faz mal, proximidade demais decepciona e que de perto ninguém é normal: é pior, muito pior. O que se viu foi um ídolo que mal sabe articular as palavras (e aqui não vai qualquer cobrança de correção verbal segundo a norma culta da língua nem tampouco exigências semânticas sobre articulações puristas entre sujeitos, verbos e predicados). A impressão é a de que, se não quer aparecer ou dizer nada na grande ou na pequena mídia, não é por uma questão ideológica ou política: é por uma razão, infelizmente, mais pobre e realista. Não tem o que dizer, não sabe o que dizer e muito menos como dizer. Só sabe fazer isso cantando. A julgar pelo pensamento expresso no Roda Viva, fora dos palcos, ficar calado é um sinal de inteligência e bom senso.
Falando, Mano Brown dá a impressão de ser um homem com uma visão extremamente limitada sobre o mundo e sobre os problemas da própria pobreza da qual diz fazer parte. Foi constrangedor quando lhe pediram sua impressão sobre o Movimento dos Sem Terra (MST). A resposta foi do tipo: "tô sabendo que tem um cara aí que tá preso, que tá pagando pelos outros e que a luta dele não é dele só. Não é justo que ele pague só". Ãh? Nem o nome do "tal cara" ele sabia. Provavelmente estava se referindo a José Rainha.
PERIFERIA CONSERVADORA – Depois do famigerado clichê do amor trazido por Paulo Lima, o segundo lugar no quesito bobagem foi encenado por Paulo Markun, o apresentador do programa. Ao final da entrevista, afirmou que, já que ninguém havia provocado Brown, ele, Markun, iria fazê-lo afinal. E saiu com outra pérola: "você é um cara paz e amor?" Se era para perguntar coisas assim, por que não chamaram o Louro José para a bancada de entrevistadores? Poderia ter dado contribuição melhor. Os dois melhores momentos do programa, se é que houve, foi quando Mano Brown afirmou que, por uma questão de instinto, não é e nem sabe ser um pai presente e, principalmente, quando afirmou que Martha Suplicy, adorada pela periferia pelas reformas que fez na área de educação, perdeu as eleições para José Serra entre os pobres porque a periferia não gosta de mulher que larga o marido para casar com argentino. Ah, e os ideólogos do não consumismo mordam o nariz e pisem nas costas: Mano Brown adora um tênis Nike.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado no jornal "A Tarde" de Salvador. Reprodução com autorização da autora.