quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O leite cáustico e Hebe Camargo

Por Malu Fontes*


Todo mundo tem seu preço. A imagem conquistada pelos artistas na TV os leva a se vender a quem paga mais e para muitos os fins justificam sim os meios. Alguns se vendem apenas mentindo um pouquinho, dizendo que usam cola de dentadura quando nem dentes postiços têm, como faz Suzana Vieira. Outros, mais metidos a galã, como Fábio Assunção, aparecem em revistas conceituadas anunciando recentemente uma marca de bijuterias femininas folheadas a ouro, um tipo de produto que tem tanto a ver com ele ou com as mulheres com quem anda quanto aquele leite de aveia de nome duvidoso e embalagem barroca que Vera Fisher jura que usa.

Essa semana, todos os brasileiros que não vivem em Marte ficaram sabendo de mais uma safadeza cometida por poderosos chefes de quadrilha que atendem pelo nome de empresários do setor de laticínios. Para render o leite longa vida que comercializam e para evitar que este, mesmo cheio de impurezas e de tudo o que é lixo dentro, não ficasse com cheiro ou aspecto de estragado na mesa dos incautos que o consomem, tacaram doses cavalares de nada menos que água oxigenada e soda cáustica.

NAZISTA - E quem quiser que morra de distúrbios estomacais, de câncer a médio ou longo prazo ou de deficiência alimentar mesmo, já que as vitaminas existentes no leite e obrigatórias para uma dieta balanceada eram as primeiras a serem destruídas com a tal fórmula inventada por um engenheiro químico. O sujeito certamente é um herdeiro de primeira linhagem do nazismo, para se prestar a tamanha criatividade científica e encher os bolsos com seu invento. E não custa lembrar que em cada caixinha de leite dessas cheia de soda cáustica e água oxigenada havia um selinho muito do nítido com a inscrição S.I.F: Serviço de Inspeção Federal. Ou seja, os órgãos do governo responsáveis por zelar e fiscalizar os produtos que o povo consome atestaram oficialmente que o leite estava perfeitinho.

Mas como brasileiro é um povo que a cada dia perde o direito de se surpreender com o que quer que seja, tamanha a coleção de safadezas cometidas literalmente por tudo e todos ao seu redor, nem bem acabara de decidir se parava ou não de consumir leite longa vida, eis que é surpreendido com a informação de que os queijos também estão sendo adulterados, dessa vez com falsas informações sobre a validade. E Minas Gerais continua brilhando na tela da TV como o paraíso das adulterações. A TV anuncia: aquele queijinho mineiro em sua geladeira foi mandado para abastecer os supermercados do país quando já estava vencidíssimo.

A ENJÓIADA OXIGENADA – Bem, mas o que o veículo televisão tem mesmo a ver com desonestidade nacional? A princípio nada, pois o que se vê na tela não foi criado no mundo de faz de conta televisivo, mas na realidade da vida brasileira real. Entretanto, na hora do aperto e do escândalo, é à força da TV que os beneficiados com a fórmula perversa do leite cáustico recorrem para lavar com cloro a imagem de monstros. No dia seguinte à denúncia do leite 'batizado', quem teve todos os motivos do mundo para sorrir foi a velha dama do sofá mais famoso do Brasil. Ela mesma, a plastificada, enjóiada, oxigenada e esticada até não poder mais, Hebe Camargo, chamada para ser a garota propaganda de um dos mais renomados leites de caixinha.

Aliás, a escolha deve ter partido de um critério elementar: quem nesse país combina mais com água oxigenada que Hebe? Não, as madeixas bisonhas de Suzana Vieira em Duas Caras não valem, ultrapassam a fronteira do freak show e negócios são negócios. A senhora dos anéis mais cobiçados pelas peruas na TV foi chamada às pressas por uma das bodegas de leite acusadas de adulteração, aquela de origem italiana, que financiava um time de futebol paulista e há alguns anos tinha um anúncio todo mimoso com criancinhas fantasiadas de leões, gatinhos e congêneres, ganhador de prêmios publicitários mundo afora.

UMA GRACINHA - Dona Hebe foi convidada em caráter de urgência como garota propaganda para lavar a imagem do leite químico em merchandising durante o seu programa no SBT. Quando a loiraça da quarta idade recebeu, não se sabe, mas não é segredo que nas agências de publicidade tops do mercado há registrado que a apresentadora cobra um cachê mínimo de R$ 236 mil para falar sobre qualquer produto, em seu programa, durante 60 segundos. Os asteriscos existentes nessas tabelas advertem que esse preço pode dobrar, triplicar, explodir, enfim, em situações de emergência e quando se trata de crise de imagem, como é o caso do tal leite. Para dizer que um leite com soda cáustica é maravilhoso e puro (e para beber um copão dele no ar, com direito a bigodinho branco na boca de botox) o preço pode ir para a estratosfera. E isso sem falar no que a marca vai pagar para a emissora.

E o pior é que nesse tempo de ditadura da imagem (sim, nesse mundo de faz de conta, imagem é tudo), periga até as donas de casa fãs de Hebe organizarem passeata em defesa do tal leite das crianças vestidas de leãozinho. Do lado sério da coisa, quem se importa se uma respeitável senhora beirando os 80 anos se vende para mentir? A essa altura, o assunto leite já descamba para o esquecimento, pois está todo mundo comemorando, sobretudo as quadrilhas, o fato de o Brasil sediar a Copa do Mundo em 2014. Nunca se terá visto nesse país tamanho festival de obras superfaturadas. Os principais empreiteiros do país têm todos os motivos do mundo para comemorar, todos os dias, durante os próximos sete anos. Inclusive Hebe, refestelada em seu sofá branco-leite, que acha tudo, do Brasil sediar a Copa a tomar leite com Soda Cáustica, "uma gracinha".

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. O texto é uma reprodução autorizada pela autora.