Por Malu Fontes
Em uma semana de noticiário tedioso em torno de mais uma guerra de dossiês travada entre a oposição e o governo e com o presidente Lula serelepe ao extremo futucando seus adversários com vara curtíssima, do alto da segurança proporcionada pelos mais altos índices de popularidade já experimentados desde que tomou posse do seu primeiro mandato, as manchetes dos telejornais concentraram-se na epidemia da dengue no Rio e em mais uma tragédia produzida na esfera da vida privada brasileira.
Se desde maio do ano passado muita gente no mundo e no Brasil se pergunta o que terá acontecido com a garotinha inglesa Madeleine McCann, desaparecida de um quarto de hotel durante viagem de férias de sua família a Portugal, os brasileiros, a partir de sábado passado passaram a ter em sua crônica policia a sua própria Madeleine: a menina Isabella Oliveira Nardoni, 5 anos, cujo corpo foi encontrado no jardim do prédio onde mora seu pai, no bairro do Carandiru, em São Paulo, supostamente atirada do sexto andar. Viva ou morta, até aqui a Madeleine inglesa não foi encontrada e por mais absurda que pareça a versão, para a Polícia Portuguesa, os principais acusados do desaparecimento (e morte, segundo essa linha investigativa) são os próprios pais da menina, Gerry e Kate McCann, um típico casal inglês de classe média e vida confortável.
SOCO NO ESTÔMAGO - Desde o anúncio da morte de Isabella em circunstâncias tão trágicas e nebulosas, o telejornalismo, sobretudo o popular, como o Brasil Urgente, de José Luís Datena (BAND), por exemplo, não fala de outro assunto. No calor do sensacionalismo e do forte apelo que esse fato carrega em si, os riscos de se repetir fórmulas interpretativas já usadas pela polícia e pela imprensa brasileiras se desenhavam desde as primeiras abordagens da cobertura. Sem querer-querendo, tanto a Polícia quanto a imprensa, embora com uma sutileza e tanto, desde o princípio aproximavam o pai da menina e a madrasta da condição de suspeitos principais.
Para um país ainda boquiaberto com o episódio da empresária torturadora da filha adotada ilegalmente, em Goiânia, a morte para lá de brutal de Isabella foi um segundo soco no estômago em pouco mais de duas semanas. A propósito, uma delegada envolvida na apuração da morte de Isabella já chamou o pai da menina textualmente de "assassino", diante de dezenas de jornalistas, embora o inquérito esteja longe de ser concluído. Nessas horas, não há como esquecer casos da Escola Base, cujos donos, depois de moralmente linchados sob a acusação de pedofilia, foram tardiamente inocentados. Suas vidas, no entanto, jamais voltaram para os trilhos. O outro caso foi o do assassinato brutal de um empresário americano e sua mulher, mórmons, em um condomínio da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, há alguns anos. Anthony Garotinho, então secretário de Segurança do Rio, chegou a dizer diante de todas as redes de TV, que o assassinato fora cometido por uma garota de 14 anos, filha do casal, com uma machadinha de brinquedo. Não foi.
TIRANIAS E PICULA – O fato de se tratar de mais um caso de violência em grau máximo praticada contra uma criança faz pensar na condição ambígua sob a qual vive a infância brasileira. A contradição com a qual o Brasil trata suas crianças é abordada com maestria pelo psicanalista italiano Contardo Calligaris em seu primeiro livro lançado no Brasil (Hello Brasil – notas de um psicanalista brasileiro em viagem ao Brasil, Ed. Escuta, R$ 40,00).
Com seu olhar etnográfico e estrangeiro, Calligaris revela sua perplexidade diante do modo como as famílias brasileiras, principalmente as de classe média e alta, são tolerantes com suas crias. Cedem sem pestanejar aos caprichos, desejos e tiranias de seus filhos pequenos, ao ponto de submeter amigos ou freqüentadores de restaurantes a constrangimentos e irritações, como em cenas típicas em que crianças, aos gritos, em bando, brincam de picula entre as mesas nas quais há quem perca o apetite diante da falta de educação (dos pequenos) e de bom senso e capacidade, ou vontade, de impor limites (dos pais). A tese é a de que a criança brasileira é, todo o tempo, atendida em seu princípio do prazer e exerce, na casa e na rua, uma condição de príncipes e princesas, pequenos déspotas tiranos que esperneiam até ser atendidos em seus desejos.
SACOS DE PANCADAS - No entanto, do mesmo modo em que, na cultura familiar brasileira, a condição de reizinhos da casa é estimulada pelos pais em seus filhos pequenos, o mesmo país que fomenta esse comportamento tolerante, paradoxalmente choca os estrangeiros, como ocorreu e ocorre com o próprio Calligaris segundo suas palavras, ao se destacar pelos altos índices de atos de violência praticados contra a criança. A presença em larga escala de crianças pequenas vivendo nas ruas é ilustração desse paradoxo.
Ou seja, as crianças brasileiras, ao mesmo tempo em que assumem o papel de reis da casa, freqüentemente são guindadas à condição desumana de saco de pancadas, não exatamente pancadas equivalendo a pequenas palmadas, mas a um conjunto de barbáries. E não vale lançar mão do argumento de que isso, a vitimação da infância brasileira pela violência, somente se dá ou se explica pelos bolsões de miséria existentes no país. O caso de Isabella, a Madeleine brasileira, e da adotiva torturada em Goiânia por uma família de classe média estão aí para mostrar que não é bem assim.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 06 de abril de 2008. maluzes@gmail.com