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segunda-feira, 31 de agosto de 2009



[]Leia a terceira reportagem da série

[]Leia a entrevista na íntegra com Ana Paula Padrão

[]Assista ao vídeo com o perfil da entrevistada










[]Leia a segunda reportagem da série

[]Leia a entrevista na íntegra com Adriana Carranca

[]Assista ao vídeo com o perfil da entrevistada









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[]Leia a reportagem

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[]Entrevista na íntegra com Carlos Reiss

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Bate Papo com Ana Paula Padrão

Bate-Papo com Ana Paula Padrão

Delicada, ela ainda conserva parte da postura dos tempos de bailarina. Para quem nunca a viu de perto é um susto vê-la levantar da bancada e perceber que uma das jornalistas mais respeitadas do país não faz o tipo mulherão de 1m80. Mesmo assim, Ana Paula Padrão já visitou lugares que minimamente exigem muito mais do que boa vontade em informar. Exigem coragem. Comçando a careira em Brasília, Ana Paula logo reportou de lugares muito mais hostis do que os arredores do Congresso. Kosovo, Afeganistão, Oriente Médio. A jornalista foi longe quando o assunto é a informação em lugares nada convencionais. Na entrevista ao JE Informa, Ana Paula Padrão conta sobre sua passagem pela Coreia do Norte como uma das duas únicas jornalistas brasileiras a entrar o país mais fechado do mundo.


Ana Paula Padrão com um militar norte-coreano, em 2005 / Arquivo Pessoal


Por Fernando Galacine
galacine@jeinforma.com
Editor do JE em São Paulo


JE Informa - Lendo os relatos da Christiane Amanpour e até relembrando as suas reportagens na Coreia do Norte, dá para perceber que a sociedade do país é muito fixamente dirigida, muito bem orquestrada. Você já foi a inúmeros locais de conflitos no planeta como o Afeganistão e o Kosovo. Com essa base, dá pra se falar propriamente em riscos quando o assunto é reportagem na Coreia do Norte?

Ana Paula Padrão - Sim, sem dúvida! É claro que não são riscos de bala perdida, tiroteios, homens-bombas, mas é um risco pelo monitoramento. O processo para que eu entrasse na Coreia do Norte foi a obtenção do visto para a ida da equipe ao país, formada pela produtora, pelo cinegrafista e por mim. É claro que muitos outros repórteres já haviam entrado como turistas, mas eu queria entrar como jornalista, dizendo exatamente o que estava indo fazer lá. Fui com o visto do governo. Quando chegamos ao aeroporto o nosso check-in já havia sido feito e ainda lá eles confiscaram os nossos celulares, as nossas passagens de volta e os nossos passaportes. Eu contestei. Disse que o passaporte era o único documento que me garantiria liberdade, que provaria que era brasileira... Era a maneira que eles encontraram para que você, por exemplo, não saísse de carro filmando, mostrando tudo sem a presença deles...

JE - Chegou a alterar o cronograma das suas reportagens esse acontecimento?

Não, não chegou a alterar. Quando você manifesta interesse em fazer uma reportagem num país como a Coreia do Norte você tem que enviar uma lista de pedidos, dizendo o que pretende abordar na sua visita. Eles atenderam parcialmente a minha. Eu quis, por exemplo, ir até a fronteira com a Coreia do Sul. Eles permitiram, mas solicitei para ir às cidades do interior do país. Não me permitiram. Pedi uma entrevista com representantes do governo, também não fui atendida. Perguntei sobre entrevistar a população, falar com as poucas pessoas que passavam pelas ruas, novamente não me atenderam.

Enfim, queria mostrar inúmeras coisas, como os mercados ilegais que acontecem na casa das pessoas, porque não existem mercados no país, mas não consegui. Os jornalistas que visitam o país acabam fazendo um mesmo tour pelas praças, por alguns pontos da cidade, pelas estátuas, monumentos... Inclusive, você é obrigado por eles a depositar flores no monumento dedicado ao líder Kim Il-sung!...

O que acontece é que eles escondem muito a verdade. No hotel em que eu estava, a energia elétrica caía diariamente por volta das 20h. Comentei isso com um dos guias e ele foi enfático: disse que não havia problemas com o sistema de energia do país, que aquilo era apenas um pequeno transtorno. Perguntei a ele se o país fazia algo para consertar a situação e ele novamente insistia que não havia problema algum, que a rede elétrica era muito moderna e que o país estava construindo incontables usinas elétricas. Incontables, porque esses guias falavam perfeitamente o espanhol e por isso mesmo eles entendiam perfeitamente tudo o que conversávamos e o que gravávamos nas passagens de vídeo para as matérias. Numa certa vez eu estava numa praça em Pyongyang, falando sobre os monumentos, sobre a rica arquitetura da escola soviética... Quando os guias ouviram a palavra ‘soviética’ eles mandaram a gente parar a gravação imediamente e disseram que veriam todo o material gravado até aquele momento para poderem apagá-los. Eu protestei, reclamei, mas como eles entendem de tecnologia bem menos que nós, demos um jeito de manter uma cópia daquela gravação conosco.


JE - Já que você falou sobre essa clara tentativa de censura, você chegou a ter contato com imprensa da Coreia do Norte? Há pluralidade, algo parecido...?

Imprensa?... [risos]


JE - Sim, claro, se ela existir...

Não existe pluralidade na imprensa da Coreia do Norte. Existe apenas um canal de televisão, estatal logicamente. Cheguei a assistir pequenos trechos da programação e é quase exclusivamente uma agenda do governo naquele dia. Existem algumas emissoras de rádio, alguns poucos jornais, o Pyongyang Times... Tudo, absolutamente tudo na Coreia do Norte é do governo. Não existe instituição privada no país. Meios de comunicação, empresas e até mesmo o hotel no qual fiquei eram públicos.


JE - Você disse que seu celular foi retido logo no aeroporto. Então você e a equipe ficaram isolados enquanto estiveram na Coreia do Norte...

Havia um telefone no hotel. Assim que cheguei, eles perguntaram se eu falaria com alguém durante o período que ficaria por lá. Eu disse que sim, que iria falar com o meu marido e eles me pediram os números de telefone dele. Eu falei com o meu marido duas vezes... É parecido com aquelas ligações via telefonista num Brasil dos anos cinquenta, sessenta. Eu dizia que queria falar com o meu marido, eles passavam e os guias ficavam ali perto, sentados num banquinho... Não cheguei a perceber, mas acredito que eles tenham conferido a minha conversa.


JE - Não é exagero falar que você poderia ter sido presa em qualquer momento da viagem, por qualquer motivo, ainda mais com comunicação restrita, sem passaporte... Havia algum plano alternativo, alguém que pudesse ajudá-la?

Quando cheguei à Coreia do Norte avisei todas as ONG’s presentes no país, assim também como a ONU, que eu estava lá. O Itamaraty também foi avisado da minha ida. Inclusive, no último dia da nossa estada na Coreia do Norte fomos visitados em nosso hotel por um representante da ajuda humanitária da ONU. No entanto, foi uma situação constrangedora. Como estávamos nos quartos, prestes a descer, os nossos guias o receberam antes, mas o trataram muito mal, perguntando o porquê da ida dele ao hotel. Quando descemos, dissemos aos guias que ele era um conterrâneo nosso, que estava fazendo um trabalho de ajuda na região e que conversaríamos com ele no bar do hotel. Ficamos em uma mesa e os guias, desconfiados, em outra, ao lado, ouvindo tudo.


JE - Como foi o processo para a entrada na Coreia do Norte?

Nós conseguimos o visto do governo norte-coreano após um ano de tentativas, o que é relativamente pouco, comparado ao processo de obtenção de vistos por outros jornalistas. O pedido para o visto já estava encaminhado em outras representações diplomáticas da Coreia do Norte no exterior. Quando o governo de Pyongyang abriu uma representação em Brasília, juntamos todos esses pedidos e demos entrada para o visto ser obtido por aqui. Durante esse período, fui a Brasília umas três vezes por semana resolver também outras documentações relativas ao Itamaraty. Eu e a minha equipe fomos os primeiros aqui no Brasil a ter esse tipo de concessão e depois de nós ainda ninguém viajou para a Coreia do Norte com o visto de jornalista reconhecido por Pyongyang.


JE - Sobre a população norte-coreana. Você conseguiu perceber, nesse período que ficou no país, uma vontade de revolução por parte da sociedade? Ou eles ficaram, de certa forma, alienados pelo isolamento?

A primeira sensação que você tem ao chegar à Coreia do Norte é que você voltou no tempo. As ruas, a mínima quantidade de pessoas circulando até mesmo nos grandes centros urbanos, como Pyongyang, faz tudo parecer muito organizado, muito artificial. Você se sente numa verdadeira cidade cenográfica. Fomos ao estádio numa época de comemorações e os ensaios para a festa são milimetricamente ensaiados, organizados.

É complicado explicar essa população. Eles continuam numa situação idêntica a décadas primeiro pela falta de informação. Não há acesso a qualquer tipo de informação que não passe pelo filtro do governo. Nada. Não há jornais, não há emissoras de TV, até mesmo o dial dos rádios vem fixado numa única estação. Fixado para você nem sequer conseguir tentar sintonizar uma rádio de ondas curtas que poderia captar algum sinal de fora do país. Como há esse filtro do governo norte-coreano na informação que chega à população, a notícia tem a forma que eles quiserem. A Coreia do Sul para os norte-coreanos, por exemplo, é um lugar onde só há quadrilhas, gângsteres, prostituas... Todo mundo que vai para lá é obrigado a se prostituir... Eles [os norte-coreanos] não têm acesso a nada e nem mesmo meios de passar a informação se quisessem.

Recentemente, um cidadão norte-coreano, ao que parece, conseguiu um celular na fronteira com a China e filmou um espancamento numa praça na Coreia do Norte e soltou as imagens, também enviando-as pela fronteira com a China. É um vídeo curtinho, foi parar até na CNN. Mas são exceções. Para os norte-coreanos falta muita coisa. E a fome, que toda a população passa constantemente é um fator que não deve ser esquecido. Com a fome há poucos meios para revoltas. O organismo perde a capacidade de reação. Os guias quando nos levavam para comer, em restaurantes sempre vazios, como toda a cidade, comiam feito desesperados. Eles agarravam aquela chance de nos levar para almoçar e jantar como uma oportunidade para alimentarem-se bem. Como disse, lá é tudo muito artificial.

Uma certa vez eu presenciei uma ponte ruindo, desabando. Apontei a ponte para o guia, dizendo: “Veja, a ponte caiu!’ ele me respondeu. “Não, ela não caiu”. Eu afirmei novamente: “Sim, ela caiu. Eu vi!”e ele continuou negando. Se você está vendo algo vermelho, eles dizem que, na verdade, o que você está vendo é branco...


JE - Você pode contar, traduzir, o que é ter uma experiência jornalística na Coreia do Norte?

Não é bem uma experiência jornalística. Eu tentei fazer o melhor possível. E acho que consegui um material muito razoável, justamente por estar sendo vigiada por três guias que se revezavam dia e noite... É claro que não conseguimos mostrar a realidade. Ir à Coreia do Norte é diferente de ir a qualquer outro lugar no qual você pode conversar com a população, ver os seus problemas, visitar o interior, ver o que falta para cada um deles.

A Coreia do Norte é um país de extrema idolatração. Chega a ser artificial. Você não pode, por exemplo, dizer que Kim Il-Sung morreu. É proibido. Eu perguntei: “Mas como assim não morreu? O homem está morto!” Os guias me disseram que ele estará sempre vivo em seus corações! Nisso, eu pedi aos guias para visitar um monumento, um cartaz _agora não me lembro_ de Kim Il-Sung e eles me perguntaram o porquê. Eu respondi que era para mostrar como os norte-coreanos amavam aquele líder, como gostavam dele, o idolatravam. E realmente fiz isso. Comecei a gravar em frente ao cartaz dizendo que o homem era isso, era aquilo... Rasgando mil elogios. Os guias ficaram eufóricos, entusiasmadíssimos ao ouvirem a passagem. Eles não perceberam a minha ironia.

Tive que gravar muitos materiais assim, utilizando ironias. Depois, aqui no Brasil, é que encaixava tudo em seu devido contexto. Detesto ‘Operação Kamikaze’, sair comprando briga com todo mundo e 48 horas depois ter todo meu material confiscado, sem poder mostrar nada do que eu queria. Eu prefiro ter as condições de divulgar um material razoável, mostrar, pelo menos um pouco, as condições de vida num lugar como aquele.

domingo, 30 de agosto de 2009



Ele está em todos os lugares. Sua bondade é infinita e sua Justiça é suprema. Foi ele quem criou a vida como a conhecem e estará eternamente vivo no coração de todos. Onipresente, soberano e eterno. Em suma: o Criador. Da vida? Não, da República Popular Democrática da Coreia.

Por Fernando Galacine
galacine@jeinforma.com
Editor do JE, em São Paulo

A descrição acima remete quase automaticamente à divindade e é desse jeito que os norte-coreanos descrevem, com o mais absoluto fervor, quem para eles é verdadeiramente um deus. Kim Il-Sung, ex-chefe de governo da Coreia do Norte, morto há quinze anos, é um dos exemplos mais bem acabados de como décadas de alienação informativa perante toda uma população podem contribuir para a extinção de inúmeros avanços da sociedade, entre eles o trabalho da imprensa.

Isolados na metade de uma pequena península do extremo Oriente, pouco mais de 20 milhões de pessoas cultivam uma idolatria descomedida pelo seu ex-representante político. Nas ruas de Pyongyang, capital do país, outdoors, monumentos e obras majestosas retratam o louvor dos norte-coreanos à figura de Il-Sung, carinhosamente chamado de ‘Grande Líder’. Tal situação causa estranheza para praticamente toda a sociedade que não viva naquele pequeno país asiático, mas tamanha devoção a Kim Il-Sung pode ser explicada basicamente por dois bons motivos.

O primeiro é o sistema político implementado na Coreia do Norte há quase 50 anos por Il-Sung: a ideologia Juche (pronuncia-se choo-chay) algo correspondente à autoconfiança, em coreano.



O Juche, ou se preferir kimilsonguismo, foi o modelo de administração do governo de Kim Il-Sung. Quando conquistou a liderança da parte norte da recente divisão da Coreia com a ajuda dos soviéticos, o Great Leader solidificou aos poucos o sistema que derivou do confucionismo chinês e do socialismo stalinista autoritário.

Na ideologia Juche, o país é fruto da união de todos os seus habitantes, o que faz a nação ser suficiente em todos os setores, não dependendo de ajuda de qualquer outra nação. [mais adiante você vai notar que não foi bem isso o que aconteceu no país] Outro ponto importante desse sistema é o culto à personalidade do líder dessa nação, no caso Il-Sung, presente em todos os setores da sociedade como escolas, instituições ligadas à arte, à propaganda e ao comércio, todas convertidas a órgãos públicos. O conceito foi administrado aos poucos perante toda a população norte-coreana até consolidar-se na década de 70.


Equipe de televisão espanhola nas ruas de Pyongyang; Concessões para a imprensa entrar na Coreia do Norte são raras; Maior parte dos jornalistas entram como turistas.

Na administração de Kim Il-Sung, a Coreia do Norte era realmente um dos melhores países do mundo quanto à infraestrutura e, relativamente, à qualidade de vida. Il-Sung contava com o fortíssimo apoio dos soviéticos, os verdadeiros responsáveis pela estabilidade econômica do país. Isso ia contra a ideia de autossuficiência pregada pela ideologia Juche, mas garantia a boa reputação do governo norte-coreano perante o povo. Confirmando, assim, o sucesso daquele modo de governar e, principalmente, do modo de retribuição da sociedade norte-coreana pela tal bonança ao bom líder. Com base nisso, é fácil entender um dos motivos que levaram e levam o povo da Coreia do Norte admirar tanto Il-Sung. Porém, como todos os países comunistas que dependiam da ajuda vinda da URSS, com a quebra do sistema pela crise do modelo e pela alta do preço do petróleo, a Coreia do Norte caminhava pouco a pouco rumo ao descontrole. A situação foi piorando na década de 80 e ia em direção ao nível mais crítico em meados da década seguinte, a de 90, quando Il-Sung morreu.

Entra aí o segundo motivo que leva a idolatria desenfreada a Kim Il-Sung. Quando o seu filho mais novo assumiu o poder do país, em 1994, a bancarrota do sistema norte-coreano já acontecia, embora não explicitamente. Para o colapso econômico atingir nitidamente a população da Coreia do Norte, levando milhares a morrer de fome, foi questão de meses. Mal informados sobre a situação que o país vivia, os norte-coreanos relacionaram a troca de poder à piora no nível de vida. Diante disso, não é difícil entender porque os norte-coreanos estimam tanto Kim Il-Sung. Kim Jong-Il, atual líder do principal partido do país, não pôde fazer muita coisa quando assumiu o cargo paterno. E até o que poderia, Jong-il não fez: preferiu gastar as poucas reservas financeiras do país em desenvolvimento bélico, visando respeito internacional, e em uso próprio, tornando-se famoso não só pela ameaça que hora ou outra representa ao planeta, como também pelas suas excentricidades, parte delas herdadas do querido papai.



O culto à personalidade na Coreia do Norte, como você acabou de ler, vem da ideologia Juche, mas pode ser encontrada em várias partes da história, com diferentes nomes e em diferentes níveis. Populismo, na América Latina; o Führer na Alemanha Nazista; o absolutismo monárquico na Europa medieval. Todos com sua particularidade, mas sempre focados no culto à imagem do líder. Kim Jong-Il percebeu muito rapidamente que apesar do modelo Juche estar muito arraigado à população norte-coreana, não era ele o líder que a sociedade do país reverenciaria. Com isso, o atual líder da Coreia do Norte soube muito bem manter a imagem de seu pai viva, usufruindo muitíssimo bem da premissa de ser o filho do Grande Líder. Papai Il-Sung é, mesmo morto, acredite, o presidente da Coreia do Norte. Kim Jong-Il é apenas o dirigente, apelidado com o blasé ‘Estimado Líder’.



Justamente nos esforços para manter a imagem de Kim Il-Sung viva é que Kim Jong-Il torna-se uma verdadeira ameaça à imprensa local e estrangeira. No país asiático, essa ameaça toma diversas proporções que vão da mais alta periculosidade a situações que beiram o bizarro.


Turismo bizarro. Pacotes para quem estiver interessado em passear pela Coreia do Norte: a Disneylândia de Stalin.

Existe imprensa na Coreia do Norte, mas não há pluralidade de opiniões: ela é toda comandada pelo governo. Canais de televisão que transmitem programação apenas no período da noite, revistas, jornais, algumas emissoras de rádio e até um pequeno portal na internet [sediado em um centro de internet do Japão] são todos administrados por Pyongyang. O material publicado pela mídia norte-coreana nem chega a ser censurado: ele já sai de fábrica resumindo-se à cobertura da agenda e das posições adotadas pelo governo, geralmente falando mal dos Estados Unidos, Europa e alguns vizinhos asiáticos, em miúdos, de quase o mundo inteiro. Em visita à Coreia do Norte no começo do ano passado, Christiane Amanpour, jornalista da rede de TV norte-americana CNN, teve a oportunidade  - rara, diga-se - de conversar rapidamente com uma jovem norte-coreana no metrô em Pyongyang. Segundo a jornalista, as meninas lhe disseram que "os americanos são nossos inimigos. Se eles abandonassem suas posições hostis ao nosso país, seríamos mais acolhedoras”.



Como existe imprensa na Coreia do Norte, é por certo que existam jornalistas. Mas a profissão na Coreia do Norte beira ao partidarismo. É obrigatória para o exercício da carreira a filiação ao Partido dos Trabalhadores, [sem trocadilhos...] bancada de situação do país e presidido por Kim Jong-Il. Não à toa, a Coreia do Norte foi eleita por quatro anos consecutivos pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas como o país com a pior liberdade de imprensa do mundo, entre 2002 e 2006. Hoje, a Coreia do Norte ocupa a penúltima posição, ficando à frente apenas da Eritreia, um pequeno e jovem país africano.

Fora isso, jornalistas na Coreia do Norte noticiam o que chaga a eles. E, convenhamos, não se obtém muitas informações ou furos jornalísticos tendo acesso a apenas uma montanha de releases e documentos tendenciosos em prol do governo de Pyongyang. Na Coreia do Norte não há restrições no uso da internet, como acontece, por exemplo, na China. Na Coreia do Norte simplesmente não há acesso a rede. O país sequer tem conexão com cabos submarinos internacionais. O acesso à web utilizada no país, de uso exclusivo do alto escalão do governo, vem pelo satélite. Ponto para o país de Kim Jong-Il na lista os inimigos da internet no mundo, produzida pela organização Repórteres Sem Fronteiras.



Kim Jong-Il dispõe barreiras quase intransponíveis para o acesso à informação externa pela população norte-coreana e faz isso com o claro objetivo: manter as aparências de seu governo como um verdadeiro paraíso na Terra, do qual os norte-coreanos não encontrarão melhor se saírem de lá. Como sabe que não pode provar isso, Jong-Il utiliza-se de duas premissas básicas. A primeira, como você acabou de ler, é cortar todo o tipo de o acesso a informações vindas de fora, literalmente “Não há acesso a qualquer tipo de informação que não passe pelo filtro do governo. Até mesmo o dial dos rádios vem fixado numa única estação. Fixado para você nem sequer conseguir tentar sintonizar uma rádio de ondas curtas que poderia captar algum sinal de fora do país”, conta Ana Paula Padrão, a primeira jornalista brasileira a entrar na Coreia do Norte, ao JE Informa.

Com o bloqueio do que se passa fora da área norte da Península Coreana, o governo molda a informação que chega à sociedade com a forma que ele quiser. Assim, como os Estados Unidos são pintados como a personificação de todo o mal que oprime a Coreia do Norte, os vizinhos sul-coreanos também não escapam. “A Coreia do Sul para os norte-coreanos, por exemplo, é um lugar onde só há quadrilhas, gângsteres, prostitutas... Todo mundo que vai para lá é obrigado a se prostituir...” comenta Ana Paula. Com boas doses de lavagem cerebral e desinformação veiculada pelo governo, a maior parte dos norte-coreanos acredita que, mesmo com dificuldades, vivam num lugar bom e próspero. Ao menos acreditavam.


Ana Paula Padrão e militar norte-coreano, em 2005 / Arquivo Pessoal

Ser jornalista na Coreia do Norte é uma profissão de risco. Como lidam com a informação, um dos pontos mais sagrados do governo de Jong-Il, a categoria é uma das mais vigiadas do país. Um deslize e são eles os prediletos, juntamente com inimigos do governo, a irem para um dos seis campos de concentração no interior do país, todos com o regime de trabalho forçado, herança nítida da era socialista soviética. Estima-se que a população que viva nesses campos some quase 150 mil pessoas, a maioria presa por ser contra o comando do país.

Foi para um desses campos que duas jornalistas norte-americanas foram recentemente levadas, e posteriormente libertas, num caso que mobilizou a diplomacia e a imprensa internacional. Laura Ling, de 32 anos, e Euna Lee, de 36, ambas de uma rede de TV online da Califórnia, a Current TV, foram presas na fronteira da Coreia do Norte com a China, em meados de março. Acusadas de terem invadido o território norte-coreano e praticar atos hostis contra a Coreia do Norte, Laura e Euna foram capturadas e condenadas a doze anos de trabalhos forçados. As jornalistas foram salvas, no começo de agosto, quando o ex-presidente norte-americano Bill Clinton viajou, de surpresa, à Coreia do Norte e reuniu-se com Kim Jong-Il que concedeu o perdão às duas repórteres. A discussão em torno da prisão de Laura e Euna foi a possibilidade de as jornalistas servirem como moeda de troca para a Coreia do Norte em meio à crise diplomática que distanciou o país de órgãos internacionais, como a ONU, em meio a teste nucleares no começo do ano. Não há confirmações, mas especula-se que oficialmente as jornalistas estavam ainda em território chinês quando foram detidas pela guarda norte-coreana.


Laura Ling e Euna Lee; Alguns meses num campo de trabalho forçado na Coreia do Norte

Laura e Euna produziam na região da fronteira uma reportagem sobre fugitivos do governo de Kim Jong-Il. A Coreia do Norte faz divisões territoriais com apenas dois países: a China e a Coreia do Sul. Com esse último, pela guerra que as duas nações já se envolveram e pelo fato de não estarem oficialmente em acordo de paz, a fronteira é vigiadíssima pelos exércitos norte e sul coreanos, diferentemente da região de fronteira com a China. Predominantemente desértica, embora tenha em sua maior extensão cercas e arames farpados, a região não detém com muita eficácia quem consegue chegar até aquele ponto do território da Coreia do Norte. [Para deslocar-se pelo país, de cidade em cidade, é preciso autorização do governo]. Assim, todos os que conseguem fugir do país o fazem cruzando a fronteira com a China.

Pela mesma fronteira, além de pessoas, passam cargas incomensuráveis de produtos contrabandeados, sejam eles com conhecimento das autoridades norte-coreanas, facilmente corruptíveis, ou não. Produtos eletrônicos, entre eles celulares, proibidos com pena capital na Coreia do Norte. Com esses aparelhos, alguns equipados com câmeras, é possível fazer pequenas filmagens sobre o que acontece no país. São poucos os norte-coreanos que aceitam correr o risco, não só pela relativa rigidez do sistema, - que lucra com a venda desses aparelhos, embora oficialmente não os permita - mas também pela situação delicada na qual vivem. Formada praticamente por camponeses, a população norte-coreana vive com o fantasma da fome por quase toda a vida. Junte isso a uma alienação mental e você terá um povo desencorajado a quase tudo. “É complicado explicar essa população. Os guias quando nos levavam para comer, em restaurantes sempre vazios, comiam feito desesperados. Eles agarravam aquela chance de nos levar para almoçar e jantar como uma oportunidade para alimentarem-se bem” conta Ana Paula, lembrando dos poucos habitantes norte-coreanos com os quais teve contato: os seus guias.

Apesar do endeusamento descomedido de Kim Il-Sung, a situação para a imprensa restrita na Coreia do Norte parece cada dia mais insustentável. Nitidamente caindo de grau em grau, as referências como ‘Eterno’ e ‘Estimado Líder’ parecem não comportarem mais uma no louvor da sociedade da Coreia do Norte. Pior: desde o começo da década chegam a toda hora aos norte-coreanos rumores que Kim Jong-Il está morto. Situação que aconteceu ao menos cinco vezes, todas desmentidas pelo governo em Pyongyang e que, ao fundo estavam corretas, mas ilustram que independentemente de serem especulações de órgãos de inteligência internacionais, a população da Coreia do Norte também criou coragem para comentar tal tipo de assunto nas ruas, embora meio que desencontradamente. Com base nesses acontecimentos analistas internacionais afirmam que um sucessor de Kim Jong-Il [possivelmente seu filho mais novo, que teria sido escolhido em junho desse ano] não terá condições de manter a ‘consideração’ dos norte-coreanos em relação aos descendentes de Il-Sung no poder. Se o processo democrático de fato virar prática na Coreia do Norte - sim, na teoria a Coreia do Norte é uma democracia -  as chances do trabalho da imprensa melhorar crescem consideravelmente. Quer Il-Sung queira ou não.

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