segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Bate Papo com Ana Paula Padrão

Bate-Papo com Ana Paula Padrão

Delicada, ela ainda conserva parte da postura dos tempos de bailarina. Para quem nunca a viu de perto é um susto vê-la levantar da bancada e perceber que uma das jornalistas mais respeitadas do país não faz o tipo mulherão de 1m80. Mesmo assim, Ana Paula Padrão já visitou lugares que minimamente exigem muito mais do que boa vontade em informar. Exigem coragem. Comçando a careira em Brasília, Ana Paula logo reportou de lugares muito mais hostis do que os arredores do Congresso. Kosovo, Afeganistão, Oriente Médio. A jornalista foi longe quando o assunto é a informação em lugares nada convencionais. Na entrevista ao JE Informa, Ana Paula Padrão conta sobre sua passagem pela Coreia do Norte como uma das duas únicas jornalistas brasileiras a entrar o país mais fechado do mundo.


Ana Paula Padrão com um militar norte-coreano, em 2005 / Arquivo Pessoal


Por Fernando Galacine
galacine@jeinforma.com
Editor do JE em São Paulo


JE Informa - Lendo os relatos da Christiane Amanpour e até relembrando as suas reportagens na Coreia do Norte, dá para perceber que a sociedade do país é muito fixamente dirigida, muito bem orquestrada. Você já foi a inúmeros locais de conflitos no planeta como o Afeganistão e o Kosovo. Com essa base, dá pra se falar propriamente em riscos quando o assunto é reportagem na Coreia do Norte?

Ana Paula Padrão - Sim, sem dúvida! É claro que não são riscos de bala perdida, tiroteios, homens-bombas, mas é um risco pelo monitoramento. O processo para que eu entrasse na Coreia do Norte foi a obtenção do visto para a ida da equipe ao país, formada pela produtora, pelo cinegrafista e por mim. É claro que muitos outros repórteres já haviam entrado como turistas, mas eu queria entrar como jornalista, dizendo exatamente o que estava indo fazer lá. Fui com o visto do governo. Quando chegamos ao aeroporto o nosso check-in já havia sido feito e ainda lá eles confiscaram os nossos celulares, as nossas passagens de volta e os nossos passaportes. Eu contestei. Disse que o passaporte era o único documento que me garantiria liberdade, que provaria que era brasileira... Era a maneira que eles encontraram para que você, por exemplo, não saísse de carro filmando, mostrando tudo sem a presença deles...

JE - Chegou a alterar o cronograma das suas reportagens esse acontecimento?

Não, não chegou a alterar. Quando você manifesta interesse em fazer uma reportagem num país como a Coreia do Norte você tem que enviar uma lista de pedidos, dizendo o que pretende abordar na sua visita. Eles atenderam parcialmente a minha. Eu quis, por exemplo, ir até a fronteira com a Coreia do Sul. Eles permitiram, mas solicitei para ir às cidades do interior do país. Não me permitiram. Pedi uma entrevista com representantes do governo, também não fui atendida. Perguntei sobre entrevistar a população, falar com as poucas pessoas que passavam pelas ruas, novamente não me atenderam.

Enfim, queria mostrar inúmeras coisas, como os mercados ilegais que acontecem na casa das pessoas, porque não existem mercados no país, mas não consegui. Os jornalistas que visitam o país acabam fazendo um mesmo tour pelas praças, por alguns pontos da cidade, pelas estátuas, monumentos... Inclusive, você é obrigado por eles a depositar flores no monumento dedicado ao líder Kim Il-sung!...

O que acontece é que eles escondem muito a verdade. No hotel em que eu estava, a energia elétrica caía diariamente por volta das 20h. Comentei isso com um dos guias e ele foi enfático: disse que não havia problemas com o sistema de energia do país, que aquilo era apenas um pequeno transtorno. Perguntei a ele se o país fazia algo para consertar a situação e ele novamente insistia que não havia problema algum, que a rede elétrica era muito moderna e que o país estava construindo incontables usinas elétricas. Incontables, porque esses guias falavam perfeitamente o espanhol e por isso mesmo eles entendiam perfeitamente tudo o que conversávamos e o que gravávamos nas passagens de vídeo para as matérias. Numa certa vez eu estava numa praça em Pyongyang, falando sobre os monumentos, sobre a rica arquitetura da escola soviética... Quando os guias ouviram a palavra ‘soviética’ eles mandaram a gente parar a gravação imediamente e disseram que veriam todo o material gravado até aquele momento para poderem apagá-los. Eu protestei, reclamei, mas como eles entendem de tecnologia bem menos que nós, demos um jeito de manter uma cópia daquela gravação conosco.


JE - Já que você falou sobre essa clara tentativa de censura, você chegou a ter contato com imprensa da Coreia do Norte? Há pluralidade, algo parecido...?

Imprensa?... [risos]


JE - Sim, claro, se ela existir...

Não existe pluralidade na imprensa da Coreia do Norte. Existe apenas um canal de televisão, estatal logicamente. Cheguei a assistir pequenos trechos da programação e é quase exclusivamente uma agenda do governo naquele dia. Existem algumas emissoras de rádio, alguns poucos jornais, o Pyongyang Times... Tudo, absolutamente tudo na Coreia do Norte é do governo. Não existe instituição privada no país. Meios de comunicação, empresas e até mesmo o hotel no qual fiquei eram públicos.


JE - Você disse que seu celular foi retido logo no aeroporto. Então você e a equipe ficaram isolados enquanto estiveram na Coreia do Norte...

Havia um telefone no hotel. Assim que cheguei, eles perguntaram se eu falaria com alguém durante o período que ficaria por lá. Eu disse que sim, que iria falar com o meu marido e eles me pediram os números de telefone dele. Eu falei com o meu marido duas vezes... É parecido com aquelas ligações via telefonista num Brasil dos anos cinquenta, sessenta. Eu dizia que queria falar com o meu marido, eles passavam e os guias ficavam ali perto, sentados num banquinho... Não cheguei a perceber, mas acredito que eles tenham conferido a minha conversa.


JE - Não é exagero falar que você poderia ter sido presa em qualquer momento da viagem, por qualquer motivo, ainda mais com comunicação restrita, sem passaporte... Havia algum plano alternativo, alguém que pudesse ajudá-la?

Quando cheguei à Coreia do Norte avisei todas as ONG’s presentes no país, assim também como a ONU, que eu estava lá. O Itamaraty também foi avisado da minha ida. Inclusive, no último dia da nossa estada na Coreia do Norte fomos visitados em nosso hotel por um representante da ajuda humanitária da ONU. No entanto, foi uma situação constrangedora. Como estávamos nos quartos, prestes a descer, os nossos guias o receberam antes, mas o trataram muito mal, perguntando o porquê da ida dele ao hotel. Quando descemos, dissemos aos guias que ele era um conterrâneo nosso, que estava fazendo um trabalho de ajuda na região e que conversaríamos com ele no bar do hotel. Ficamos em uma mesa e os guias, desconfiados, em outra, ao lado, ouvindo tudo.


JE - Como foi o processo para a entrada na Coreia do Norte?

Nós conseguimos o visto do governo norte-coreano após um ano de tentativas, o que é relativamente pouco, comparado ao processo de obtenção de vistos por outros jornalistas. O pedido para o visto já estava encaminhado em outras representações diplomáticas da Coreia do Norte no exterior. Quando o governo de Pyongyang abriu uma representação em Brasília, juntamos todos esses pedidos e demos entrada para o visto ser obtido por aqui. Durante esse período, fui a Brasília umas três vezes por semana resolver também outras documentações relativas ao Itamaraty. Eu e a minha equipe fomos os primeiros aqui no Brasil a ter esse tipo de concessão e depois de nós ainda ninguém viajou para a Coreia do Norte com o visto de jornalista reconhecido por Pyongyang.


JE - Sobre a população norte-coreana. Você conseguiu perceber, nesse período que ficou no país, uma vontade de revolução por parte da sociedade? Ou eles ficaram, de certa forma, alienados pelo isolamento?

A primeira sensação que você tem ao chegar à Coreia do Norte é que você voltou no tempo. As ruas, a mínima quantidade de pessoas circulando até mesmo nos grandes centros urbanos, como Pyongyang, faz tudo parecer muito organizado, muito artificial. Você se sente numa verdadeira cidade cenográfica. Fomos ao estádio numa época de comemorações e os ensaios para a festa são milimetricamente ensaiados, organizados.

É complicado explicar essa população. Eles continuam numa situação idêntica a décadas primeiro pela falta de informação. Não há acesso a qualquer tipo de informação que não passe pelo filtro do governo. Nada. Não há jornais, não há emissoras de TV, até mesmo o dial dos rádios vem fixado numa única estação. Fixado para você nem sequer conseguir tentar sintonizar uma rádio de ondas curtas que poderia captar algum sinal de fora do país. Como há esse filtro do governo norte-coreano na informação que chega à população, a notícia tem a forma que eles quiserem. A Coreia do Sul para os norte-coreanos, por exemplo, é um lugar onde só há quadrilhas, gângsteres, prostituas... Todo mundo que vai para lá é obrigado a se prostituir... Eles [os norte-coreanos] não têm acesso a nada e nem mesmo meios de passar a informação se quisessem.

Recentemente, um cidadão norte-coreano, ao que parece, conseguiu um celular na fronteira com a China e filmou um espancamento numa praça na Coreia do Norte e soltou as imagens, também enviando-as pela fronteira com a China. É um vídeo curtinho, foi parar até na CNN. Mas são exceções. Para os norte-coreanos falta muita coisa. E a fome, que toda a população passa constantemente é um fator que não deve ser esquecido. Com a fome há poucos meios para revoltas. O organismo perde a capacidade de reação. Os guias quando nos levavam para comer, em restaurantes sempre vazios, como toda a cidade, comiam feito desesperados. Eles agarravam aquela chance de nos levar para almoçar e jantar como uma oportunidade para alimentarem-se bem. Como disse, lá é tudo muito artificial.

Uma certa vez eu presenciei uma ponte ruindo, desabando. Apontei a ponte para o guia, dizendo: “Veja, a ponte caiu!’ ele me respondeu. “Não, ela não caiu”. Eu afirmei novamente: “Sim, ela caiu. Eu vi!”e ele continuou negando. Se você está vendo algo vermelho, eles dizem que, na verdade, o que você está vendo é branco...


JE - Você pode contar, traduzir, o que é ter uma experiência jornalística na Coreia do Norte?

Não é bem uma experiência jornalística. Eu tentei fazer o melhor possível. E acho que consegui um material muito razoável, justamente por estar sendo vigiada por três guias que se revezavam dia e noite... É claro que não conseguimos mostrar a realidade. Ir à Coreia do Norte é diferente de ir a qualquer outro lugar no qual você pode conversar com a população, ver os seus problemas, visitar o interior, ver o que falta para cada um deles.

A Coreia do Norte é um país de extrema idolatração. Chega a ser artificial. Você não pode, por exemplo, dizer que Kim Il-Sung morreu. É proibido. Eu perguntei: “Mas como assim não morreu? O homem está morto!” Os guias me disseram que ele estará sempre vivo em seus corações! Nisso, eu pedi aos guias para visitar um monumento, um cartaz _agora não me lembro_ de Kim Il-Sung e eles me perguntaram o porquê. Eu respondi que era para mostrar como os norte-coreanos amavam aquele líder, como gostavam dele, o idolatravam. E realmente fiz isso. Comecei a gravar em frente ao cartaz dizendo que o homem era isso, era aquilo... Rasgando mil elogios. Os guias ficaram eufóricos, entusiasmadíssimos ao ouvirem a passagem. Eles não perceberam a minha ironia.

Tive que gravar muitos materiais assim, utilizando ironias. Depois, aqui no Brasil, é que encaixava tudo em seu devido contexto. Detesto ‘Operação Kamikaze’, sair comprando briga com todo mundo e 48 horas depois ter todo meu material confiscado, sem poder mostrar nada do que eu queria. Eu prefiro ter as condições de divulgar um material razoável, mostrar, pelo menos um pouco, as condições de vida num lugar como aquele.